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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

As pedras, os rios, os índios e nós dois.

(PIGATTI, V, T., 2009)
       O sujeito sem passado e sem futuro não tem compromisso com a preservação do meio em que habita ou da memória das coisas do lugar e de seus antepassados. A História que ensinam nas escolas públicas subdesenvolvidas  e  mesmo nas privadas também não lhes permite pensar nisto. O tempo das pessoas destes lugares é a sua vida temporal, de cada qual, inconscientemente finita,  o sujeito a desfruta como fim em si mesmo, reduzindo tudo a ele mesmo, em detrimento de todo o restante. Quando o sujeito morre o mundo também morre, pois carece de significado qualquer ideia de que há continuidade, mesmo para os que prosseguem vivos. Por isso, pelo antes e pelo depois, de memória e de compromisso, não estão vinculados a nada, pois que representam naturalmente a existência finita em si mesmos, como simplesmente começo e fim de tudo. Nem mesmo como os outros animais, os homens desses lugares se esforçam ou lutam para dar continuidade e preservar a própria espécie ou transferir qualquer herança ou qualquer lembrança.

Jardim de Colle Umberto - Treviso- Itália
Eu devo ter aprendido, suponho que desde a infância, nos meus 6 anos de idade, por algum motivo que não me recordo, que deveria enxergar as pedras. Colares e camafeus de minha mãe, Dona Rosa Tassi, filha de italianos do norte, entre vândalos e lombardos, com seu rosto arredondado e olhos rasgados, indicando que ela era resultado de uma mistura ancestral entre germânicos e membros da tribo invasora de Gengis Khan. Minha mãe tinha suas pedras que podiam ser falsas ou não, pouco importa, mas as tinha e ela as olhava com admiração diante espelho da penteadeira que refletia sua simplicidade e magnifica beleza.
Assim, ainda criança eu observava o brilho dos pedriscos da rua de fronte minha casa que refletiam os raios de sol. Depois, já no ginásio, aos 13 anos de idade, eu e meu amigo de nome Radamés, andávamos pelos campos próximos à vila procurando por pequenas pedras. Um dia desci sozinho até o córrego raso que corria pela chácara  que ficava próxima a minha casa e ali passei a peneira na areia debruçada em seu fundo  de leito e então encontrei uma minúscula vídia amarela. Talvez, por tudo isso, pelas pedras, eu tenha tentado Geologia na Universidade do Estado de São Paulo em seu campus da cidade de Rio Claro, no ano de 1975, com opção para Ecologia. Não passei no vestibular  e um ano depois entrei para o curso de Comunicação Social na Universidade de Mogi das Cruzes e me graduei.
           "Os melhores caminhos são os mais longos". Einstein escreveu que dois corpos quando se buscam livremente no universo procuram o caminho mais longo para se encontrarem. Disse ainda que nem sempre a linha reta é a menor distância entre dois pontos. Lembro-me de que entrei na Mata Atlântica lá para os lados da cidade de Mogi das Cruzes, sozinho, em 1968 , e, sem parar de caminhar, saí da floresta chegando a  praia do litoral de Bertioga, 14 horas depois. Diria que andei muito, ziguezagueei nas encostas da Serra do Mar. Por que haveria de andar em linha reta pela mata e perder a possibilidade de enxergar todas as manifestações da natureza e as suas formas? Se eu fosse turista não gostaria de caminhar em linha reta pela mata ainda que fosse a menor, mesmo que fosse  dessas de praças públicas tradicionais arborizadas  que resistiram a ideologia estética  dos síndicos modernistas.
          Na mata,  para conhecê-la, quanto mais voltas melhor, quanto mais desvios melhor. Então penso que para o ecoturismo o melhor caminho entre dois pontos é o mais longo. Penso que assim deve ser também o percurso entre o nascimento e a morte.
       A noite sempre cai primeiro e mais cedo para os que estão andando no meio da mata. As copas das árvores controlam a entrada da luz solar e, sendo ainda dia para os que estão a céu aberto, na mata as sombras chegam primeiro e põe todos seus habitantes para dormir mais cedo. Eu andando e o Rio Itapanhaú correndo e cantando ao meu lado. Receoso de não sair a tempo de dentro da mata e ter que dormir ali, buscava com os olhos e sem parar de andar, por uma pedra, uma grande pedra no meio rio enquanto avaliava a força de sua correnteza que teria de enfrentar. Uma pedra onde eu pudesse pernoitar com  mais de segurança, caso não achasse a saída da mata antes que se fizesse noite.
Pensei estar perdido e que nunca mais encontraria meus três amigos que haviam se embrenhado no dia anterior para alcançar o mesmo objetivo. Alcir galego, Sadao  mestiço nipo brasileiro e Simonal afrodescendente, era assim que se chamavam. Mas eis que bem à tardinha, quando o dia ia se cobrindo com a roupa da noite, encontrei o local onde havia sinais de acampamento na noite anterior. Notei de pronto que haviam pernoitado e acendido  fogueira. Ali encontrei quatro pedras circundando os restos da fogueira e nelas o nome de cada qual escrito à carvão. Eles sabiam que eu iria porque havia organizado e mapeado a expedição, mas jamais imaginariam que eu me embrenharia na mata e fizesse o percurso sozinho.
Aquela marca nas pedras que acusavam a presença de meus amigos em meio aquela mata deu-me forças e segui adiante. Quando o sol estava borrifando os últimos raios sobre a natureza, o caminho findou na margem do rio. Observei a profundidade do rio Itapanhaú naquele local para ver se dava pé. Vi seu leito coberto de cascalhos multicoloridos que ainda refletiam os últimos raios de sol poente. Então  tirei toda a minha roupa, fiz uma trouxa, coloquei na cabeça e atravessei nu o rio Itapanhaú. Já do outro lado, com o corpo relaxado pela água fria que descia da montanha, vesti-me e segui noite adentro em direção ao leste, apenas enxergando o caminho de terra clara e batida.  Já sob a luz do luar  fui seguindo pela estradinha de terra batida procurando sempre transitar pelo meio dela para não ser surpreendido por algum animal silvestre que estivesse de tocaia em suas margens.  Sem parar de andar e iluminado pela luz da lua segui pela estradinha até que comecei a ouvir o ruído do mar. E foi assim que andei por aquele caminho, à noite, sem enxergar o que havia mais à frente até dar com o mar e cair de joelhos na areia da praia. Fiquei ali por algum momento, de joelhos, observando as ondas quebrando na praia, tudo iluminado somente   pela luz das estrelas e da lua quarto minguante que me olhava lá de cima da linha do horizonte do mar. Então beijei a areia e o mundo, beijei o mar, as estrelas e beijei você. E beijei meus amigos, meus familiares, meus antepassados, meus amores, beijei a vida, a recompensa pela minha ousadia de ir, de cumprir com o compromisso.
Os indivíduos preenchidos pelos valores da educação tradicional de países do terceiro mundo como o Brasil, e que vivem nas grandes cidades, desprezam, de maneira geral, as pedras, os índios e os rios que cruzam as urbes. Não possuem interesse para as expressões que invocam a manifestação da natureza. A pedra lhe é apresentada como obstáculo para o trânsito, o rio que corta a urbes é visto como obstáculo, serve de grande esgoto poluído, o índio como ser humano primitivo e desprezível, um obstáculo ao desenvolvimento que nos apresentam, algo do qual  devemos nos  distanciar e que ainda oferece perigo por não ter sido de todo eliminado. 
Há incompatibilidade entre a pedra que salta do chão e a estrada por onde desliza as rodas dos automóveis. Há incompatibilidade entre o desejo primitivo de estar olhar o rio, banhar-se em suas águas e a imagem das águas poluídas que nos criam essa impossibilidade. Sentimento reforçado pela sensação de culpa por causar essa situação em que o rio  se encontra, mas que acaba por  dissimular-se no dia a dia de cada qual. Há incompatibilidade entre a pobreza e a insegurança de superá-la por outro caminho que não seja através do desenvolvimento tecnológico. Há incompatibilidade sobre a qualidade de vida proporcionada por essa condição do desenvolvimento tecnológico quando  comparada  às condição em que vivem os primitivos originais da América. Junta-se a tudo  isso o medo guardado na memória da possibilidade de, a qualquer momento, perder o que conseguimos acumular. Medo embotado de  voltarmos  ao passado onde a falta de recursos materiais e a pobreza marcaram a vida de nossas famílias para as quais, até mesmos as coisas mais simples da vida, somente era alcançada com muito esforço e abnegação 
É preciso se desincompatibilizar com essa educação e seus valores dominantes que já  nos acompanham como se fossem tradição.  Precisamos  nos  livrar da responsabilidade sobre algumas tragédias que essa educação e essa história oficial nos inculpa. Tragédias sociais como a escravidão africana, como o genocídio indígena, pelas quais não temos nenhuma responsabilidade na medida em que somos cidadãos comuns vindos de todas as partes do mundo. No entanto a História nos aponta como cúmplices para, com isso, esconderem e diluírem em meio da multidão os que são verdadeiros responsáveis. Pluralizam responsabilidades  para que possam se proteger no anonimato. Recuperar as pedras, o rio, o índio, nós dois e as coisas locais é encontrar-se com o mar, com nossa verdadeira identidade, com nosso verdadeiro amor.
         Ainda sobre as pedras, é necessário trata-las como elementos naturais, estéticos e paisagistas, como  representação cultural das mais completas e complexas para o Homem. Elemento de arrimo em terrenos preparados para o plantio, em terreno acidentado e íngreme. Sustentação de encosta e correção de voçoroca. Objeto para a incisão de escrita, registro de pinturas rupestres, esculpidas para a representação religiosa entre outras. Construção de abrigo, moradias, monumentos que resistem ao tempo. Pedras, até mesmo as que se manifestam em brilhos, adorno do corpo dependuradas em pescoços, orelhas e dedos. O quê pensar das pedras quando nos deparamos com o circulo de monolitos erguidos pelos nossos ancestrais no Reino Unido ou a grande pedra da Austrália ou as figuras da Ilha da Páscoa, ou dos seixos que, quando criança, eu tirava do riozinho que corria no mato de fronte a minha casa? Como esquecer a minúscula vídia amarela que recolhi da peneira.
Foi na cidade de Guapiara, sudeste pobre do Estado de São Paulo, que me deparei com o desprezo às pedras. Próximo dali, no município de Buri, onde havia  terminal ferroviário abandonado há dezenas de anos, como  estão todas as ferrovias paulistas, havia um monolito de dezenas de toneladas jogado no terreno. Cortado da pedra bruta  aquele bloco estava ali, abandonado, com  a seguinte  inscrição - Japan- em tinta vermelha. Era para ser  levado para o porto de Santos, como vinha acontecendo há muito tempo com a exploração dos minérios na região. Não sei porque aquele granito não seguiu e permaneceu joga no terreiro naquela estação de trem desativada!
          Andei pelo sertão daquela região de terreno empobrecido pelo constante uso de veneno nas plantações de tomate e pela poluição devastadora do ambiente natural promovida por empresários nacionais que se enriqueceram na queima das pedras para a fabricação de cal.  Andei com meu automóvel pelas estradinhas de terra batida a visitar vilas isoladas cuja população permanecia ainda no século XIX. Moradores que não tinha qualquer resquício de memória de quanto tempo estavam por ali.  Vila perdida na mata Atlântica,  com sua gente-bicho e toda sorte de deficientes  nascidos de casamentos consanguíneos. 
Implantei emissoras de rádios clandestinas pelos municípios daquela região e nas vilas isoladas onde a informação demorava dias e meses  para chegar, passou-se a levar comunicados e orientações  de toda ordem em segundos.  Os moradores mais isolados passaram a tomar contato pelo rádio com as  manifestações culturais surgidas entre os habitantes  região.  
 Depois de observar o território municipal e ver tanta pedra espalhada pelos campos, procurei pelo padre prefeito daquele município Sugeri que poderia se utilizar das pedras para calçar os terrenos íngremes onde as casas corriam perigo de soterramento em tempo de chuvas. Podia-se tratar toda a cidade com as pedras que se espalhavam pela paisagem dos campos do território municipal. Podia investir para desenvolver habilidades entre os cidadãos para que se aprimorassem artesanalmente no  manuseio das pedras. Não o convenci. 
De nada adiantou  constatar a existência de tantas pedras e de pessoas abrigadas em barracas de plástico preto. De certo havia algo que era comum  a todos eles que os faziam ignorar as pedras.  Eles eram “os Homens que não podem ficar", por isso construíam taperas de mato e barro batido ou viviam sob lona de plástico preto. Desprezavam as pedras para nunca construírem algo sólido em suas vidas, algo que pudessem acrescentar para a existência de seus descendentes. Estavam, mas não queriam ficar por isso não utilizavam nada além de barro e plástico preto. Agiam assim  para que nunca pudessem reclamar posse como ocorreria se  construissem ou levantassem algo em pedra, algo que varasse o tempo, algo que se transformaria em marco. Como me fora importante ter lido Os Gaibéus, de Alves do Redol, antes de ter ido nesta aventura para o Alto Vale do Ribeira!
            Ainda que a pedra seja tropeço para a ideia moderna de transporte e, consequentemente, da roda, pois ela é obstáculo ao se estender o asfalto, é incomoda no caminho do que anda, como bem se refere a ela o poeta urbano Carlos Drummond de Andrade. Porém a pedra pode estar por debaixo, sustentando a capa lisa, uniforme e retilínea do asfalto ou onde se assentam os trilhos do trem. Dentro das pedras estão druidas e duendes e a sensação do desconhecido, de algo que pode se abrir para outro lugar, da porta que pode se abrir para a riqueza. Dentro dela a escultura magnífica, o encaixe perfeito do aqueduto, o pé direito da casa milenar, a firmeza do terreno e a contenção da erosão.

" Tinha uma pedra no meio do caminho,
no meio do caminho tinha uma pedra "
Carlos Drummond de Andrade
             
As taperas de varas e barro batido dos " Homens que não podem ficar"  acobertam a educação precária que é culturalmente transmitida , acobertam  o analfabetismo, a falta de conhecimento tecnológico e artesanal, a falta de conhecimento de confecção de ferramentas ainda que das mais primitivas,  acobertam a disfunção e o desemprego. O "Homem que não pode ficar" é deseducado em relação aos conhecimentos na utilização de materiais duráveis e na confecção de sua habitação. A escola oficial tradicionalmente subdesenvolvida e dominante evita conversar sobre a realidade imediata desses homens e sobre a independência deles, sobre a vastidão das terras de ninguém onde não podem se estabelecer para que não hajam donos. Não lhes abastecem com o conhecimento que venha os orientar na utilização de materiais disponíveis na natureza com os quais podem confeccionar suas casas sobre a rocha e não na areia. Não lhes mostram como fazer ou adquirir ferramentas, como conter voçorocas, como demarcar o terreiro de serviço, na contenção de barrancos, na divisão de áreas de encostas para a agricultura, na construção de pontes, na condução e proteção da água. Porém até mesmo nos lugares mais ermos surgem pequenas fábricas de blocos, supostamente facilitando as construções, transferindo para o rural a necessidade de rapidez e tempo útil, valores de quem especificamente trabalha e vive nas urbes. Pode-se dizer, no entanto, que os blocos agilizam a construção, porém o que significa agilizar para os que estão inseridos em outro tempo, para os que não podem ficar?

                   Há também o " Homem que não quer ficar"  que antecede " Homem que não pode ficar" e que, diferentemente deste, despreza a herança e o que já foi construído por sua ancestralidade , abandonando ou  levado a abandonar a casa de pedra e a aldeia.   Ele se põe a caminho de  outro lugar, de outro universo, abdicando do anterior, rompendo a ligação entre ambos, para que seus descendentes não saibam disso jamais, para que não fiquem, para que busquem mais e mais.

Pedras que rolam
As pedras rolaram e eu era uma delas
As pedras que rolam juntam-se no vale
As pedras rolaram e eu sou uma delas
Nos juntaremos no vale
Não sabia dessa história
até o dia em que ela surgiu
Para chegar até ela
corri caminhos diferentes
Fiz-me chegar, dei notícias
não a deixei em paz
Éramos pedras rolantes
descíamos montanha abaixo
As pedras são todas iguais
mas entre elas existem as que se fazem rolar
Ousadia de pedra, coragem de pedra rolar.
Cada qual desceu por um dos lados, um caminho
Pedras que rolam em busca do rio
que nos fará rolar, que nos fará juntar
No rio que corta o vale
que nos fará caminhar, prosseguir
Vou parar perto de você !
No último movimento solitário.
Depois desceremos juntos, rio abaixo. 
(PIGATTI, V, T., 2009)
                                            Valionel Tomaz Pigatti (Léo Tomaz) 

                                                            Currículo Lattes:   http://lattes.cnpq.br/0781027245850748

terça-feira, 7 de julho de 2009

O TEMPO, DE MANEIRA SUAVE, FARA COM QUE UM DE NÓS DOIS DEIXE DE EXISTIR.

                   (PIGATTI, V, T., 2009)
            Terminei o curso superior de jornalismo no final da década de setenta do século XX. Desde então voltei minha atenção para questões que envolvessem a organização do país em que eu e minha família vivemos. Junto a isso, sempre me acompanhou a preocupação de descortinar as verdades e as mentiras que compõem  a identidade histórica, tanto política como cultural, deste país e também de meus antepassados. A identidade de meus antepassados esteve totalmente camuflada em mim pela imposição de valores da identidade nacional brasileira promovida pelo poder institucional do governo federal ao qual nos vimos submetidos desde que chegamos ao Brasil em 1889. 
                    Mesmo reconhecendo as dificuldades dos da minha procedência  e a precariedade econômica em que meus antepassados se viram submetidos ao emigrarem para terras de colonização portuguesa na América do Sul, fiz tudo que pude para descobrir qual era meu papel e revelar a minha identidade como indivíduo, cidadão e mesmo as minhas heranças culturais junto com as minhas manifestações artísticas de pouca ou nenhuma projeção. Sobre a herança cultural, tenho que reconhecer que meu pai, João Pigatti, legou-me algumas influências no campo das manifestações artísticas.  Ele deixou-me dois LPs de 78 rpm cada onde, em um deles, haviam duas canções, uma em cada lado.  No lado A estava a canção de título "São Paulo Avante" e, no lado B, "São Paulo Terra Querida em Flor". Meu pai havia se inspirado nas festividades do IV Centenário de São Paulo, que ocorreu no ano de 1954, quando ainda corria o espírito da Terra Paulista nos discursos, nas canções, nas poesias e nas inspirações dos povos que viviam nesta Unidade da Federação de Estados Brasileiros.  
                     Durante boa parte da minha vida, que teve inicio em 1952,  estudei, participei, discuti, enfrentei obstáculos pessoais e profissionais, constituí família e me diverti como todos os outros cidadãos. Agora, já no século XXI, nesse momento histórico,  mesmo residindo em um país subdesenvolvido, tive o privilégio de conviver com a globalização dos meios de comunicação que vai desfazendo mitos de nacionalidade e destruindo os instrumentos arcaicos de controle provinciano das informações. A globalização, através da comunicação digital,  vai eliminando as fronteiras e os monopólios da miséria  interna de países subdesenvolvidos. A globalização dos meios de comunicação através da internet vai propiciando oportunidades para as populações se libertarem do monopólio imposto pelas quadrilhas patrimonialistas institucionalizadas alojadas, há centenas de anos, em cargos de funcionários públicos e de representação política. A globalização através da internet vai expondo os costumes que se tornaram tradicionais como, por exemplo,  os dogmas ufanistas em relação a composição étnica e cultural da nacionalidade brasileira, o nacionalismo que usurpa aspectos da diversidade cultural dos povos espalhados pelo território e o poder central que tende ao despotismo omitindo o significado descentralizador do pacto federativo.  Diante disso, pode-se observar manifestações de desconfianças e desprezo em relação ao Status Quo. Embora diluídas em diversos movimentos espontâneos de natureza política e cultural, essas manifestações de desprezo e desconfiança são limitadas e desprezadas. Os questionamentos dessa natureza são proibidos na produção acadêmica  controlada, em sua grande maioria, por orientadores acadêmicos de origem marxista. Boa parte da produção de trabalhos acadêmicos registra o desejo da construção de uma Pátria Brasileira assentada na falsa ideia de civilização própria, local,  que se faz representada por um arcabouço cultural unidimensional, habitada por um povo de uma única característica étnica e estética.                
           Neste inicio do ano de 2016, é possível questionar  a importância ou não de se manter a federação de estados brasileiros e de se escancarar os verdadeiros interesses que estão por detrás desse pacto administrativo que resiste ao esfacelamento desde a época do Brasil colônia. Também passou a ser de conhecimento de todos, através das informações livres propiciadas pela internet, que na federação existem toda sorte de indivíduos dos mais diferentes matizes e procedência étnica. Assim também o clima deixou de ser unicamente tropical para encampar manifestações da natureza que até o final do século passado  eram ignoradas
                   Um dos temas proibidos, até pouco tempo, pela construtores do ideário da pátria marxista, é o que se refere as festividades ou mesmo registro históricos e educacionais de movimentos insurretos armado como os ocorridos no Sul e Sudeste, entre eles a Guerra dos Paulistas que se deu em 1932. Embora resista ao tempo, as lembranças desse evento histórico  ainda são jogadas no porão da história. Ela, a Guerra dos Paulistas de 1932, é um dos pilares onde se debruça a identidade local, estadual, que difere do restante dos Estados que compõem o pacto federativo. Isso não é diferente em outros estados da federação que também têm sua historia desprezada. É nítida a ditadura federal que se sustenta no desejo das forças políticas locais  de  um dia controlar politica e economicamente a riqueza destinada ao Governo Central  pela população dos estados federados.  
                Abrir o tema sobre a Guerra de 1932, respeitar os rapazes que morreram no conflito, recuperar as histórias, versar, musicar a respeito, discutir em público, produzir cinema, teatro e outras formas de manifestação artística é, hoje,  ato de reflexão e, ao mesmo tempo, de  libertação dos controles exercidos pela manutenção dos interesses econômicos do estado central e do ideário marxista. As manifestações sobre esse tema questiona, entre outras coisas,  o controle exercido na economia e no mercado federado pelas grandes empresas de comunicação e pelas empresas nacionais e internacionais que dependem de negociações com membros do Governo Central. Sob o ponto de vista ético e moral, abrir o tema  é  reverenciar o empenho, o sacrifício físico e material de tantos moços e moças, homens, mulheres e crianças envolvidos nessa guerra que se deu em 1932. Como consequência, ao abrir esse tema, certamente despontará, ainda que subjetivamente, um rompimento com o monopólio temático cultural que as grandes mídias e as Universidades impõem para a continuidade  de projetos ideológicos e dos benefícios advindos  do controle do grande mercado de consumo  possibilitado pelo  pacto federativo.
            Todavia, mais do que isso, abrir o tema  para discussão é como construir uma ferramenta que, naturalmente,  forçará a reorganização do processo econômico, político e administrativo ao qual estamos submetidos. Portanto, essa preocupação em relação a Guerra dos Paulistas de 1932 serve também às populações de outros Estados da Federação cujas histórias se veem soterradas a exemplo do que ocorre com os eventos relacionados  ao território paulista. Dentro desse prisma é bom registrar que o impedimento  de se tratar das questões de identidade cultural interna dos Estados Federados, é resultado cultural dos interesses dos primeiros colonizadores da matriz portuguesa e da Igreja Católica Romana, reforçado, a partir do inicio do século XX, pelo  ideário marxista. 
        No decorrer do processo colonizador outras ondas emigratórias vieram da Europa em direção ao continente latino americano, mais especificamente para o Brasil. Por terem sido pioneiros, os colonizadores portugueses e católicos apostólicos romanos acharam-se  proprietários da identidade nacional brasileira. Por uma questão de mea culpa em relação à escravidão africana e do genocídio cometido com os silvícolas, os pioneiros se viram obrigados a minimizar essas tragédias compensando-as com a admissão da presença do africano e do índio na composição ética e cultural. No entanto, seguiram desprezando a contribuição de outros povos que vieram posteriormente para se instalarem nos diversos estados que fazem parte do pacto federativo. 
     Esse modelo sociológico e histórico discriminatório se impõem ainda hoje, no século XXI,  através do sistema de educação e de promoção de mercadoria cultural. É o modelo de controle baseado no conceito marxista de Unidade Nacional que suprime e combate manifestações de identidade cultural para populações de diversos países da Europa e Oriente que imigraram para o Brasil a partir do final do século XIX, inicio do século XX. 
       Os paulistas foram derrotados em 1932 por interesses econômicos e acordos ideológicos internacionais que envolveram oligarquias internas, a Igreja Católica Romana e lideres de partidos de origem marxista estabelecidos no Brasil. Essas forças políticas optaram em apoiar a proposta de centralização do controle político e econômico através de um Governo Central e em detrimento dos interesses do pacto federativo. Com a derrota em 1932 os referenciais do Estado Paulista passaram a ser desprezados e omitidos sempre com o argumento de ceifar iniciativas de separatismo e com a justificativa econômica de priorizar causas nacionais de outros estados que ainda se mantinham materialmente e economicamente atrasados. O combate e o desprezo ao movimento paulista era justificado politicamente por atribuírem intenções separatistas aos imigrantes de origem italiana  que, em boa parte, estabeleceram-se nos Estados do sudeste e do sul.   Os estados cativados pelo Governo Central venceram a Guerra e  desprezaram  às experiências e manifestações culturais do Estado de São Paulo ou mesmo  em relação  a qualquer manifestação que pudesse recuperar a auto estima de sua população. Já nas décadas de setenta e oitenta, dada a grande atividade de partidos da esquerda marxista que se organizavam mais uma vez para alcançar o poder Central, a discriminação em relação ao Estado de São Paulo, cuja população era tida como conservadora, alcançou seu ponto mais alto.  Nessa época era, praticamente,  impossível ou  até vexatório  o fato de se afirmar em público a naturalidade paulista. Ao final da década de oitenta e no transcorrer da de noventa ficou ainda mais explicita a pressão política e cultural dos partidos políticos de esquerda para que não se tornassem públicas manifestações culturais que contivessem elementos dessa identidade local.
             Para que não pareça opinião isolada,  xenófoba, local  ou resultado de visão de mundo particular e provinciana, alguns fatos que aconteceram entre 1984 e 1986, quando a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo estava sob a gestão do escritor, ator, teatrólogo e membro do Partido Comunista Brasileiro, Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri, podem comprovar essas considerações sobre a orientação política dos marxistas de manifestar indiferença paras as manifestações culturais da  população paulista.  Antes porém, é preciso entender que, aqui no terceiro mundo, tratar do passado é algo que causa ojeriza. Isto porque a herança histórica miserável que marca os países latinos americanos do terceiro mundo e o atraso econômico e social que ainda se faz presente no dia a dia, impõe um desejo desesperado pelo amanhã. Ao lembrar coisas do passado identificamos as mesmas famílias, as mesmas correntes ideológicas e culturais,  grupos e indivíduos que estiveram e ainda estão em cena nos dias de hoje e que ainda são os responsáveis pela manutenção do atraso e pela estagnação do desenvolvimento. 
           Revirar o passado, tanto em relação ao Brasil,  como também em relação aos países que motivaram indivíduos e famílias  a emigrarem em direção a América do Sul, é ato de coragem. Cavoucar nesse passado histórico  é encontrar as raízes do atraso e da pobreza que continuam alimentando a estrutura política e  cultural do lugar para onde emigramos e  passamos a habitar.   Por esse e outros motivos semelhantes é que as coisas do passado nesses países subdesenvolvidos, como o Brasil, parecem que são sempre as mesmas e ainda que tenham acontecido  a cem ou duzentos anos, têm-se a impressão de que ocorreram  menos de 24 horas atrás. 
                 Essa rejeição ao passado é resultado do bombardeamento ideológico dos grupos políticos organizados e dos intelectuais pioneiros. Eles se fundem e se utilizam da mesma retórica.  A manutenção da miséria, a corrupção, a manutenção da pobreza são instrumentos de perpetuação no poder.  Essa manutenção alimenta o discurso  que se baseia na perceptiva do amanhã, de esperança e do futuro. Essa retórica repetitiva, mas ainda de grande sucesso, seduz eleitoralmente boa parte da população que eles mesmos sodomizam e possibilita a manutenção da fórmula cartorial de poder público.  A retórica sobre o amanhã e o futuro é artifício utilizado pelos pioneiros para se eximirem  dos equívocos e dos erros que cometeram no transcorrer da História. Ao escamotearem a construção  de uma nova versão da linha do tempo histórica,  evitam que a sociedade  tome conhecimento dos problemas causados pelo atraso intelectual, econômico e cultural imposto por um pequeno grupo de famílias tradicionais que, dessa forma, mantêm-se em seus privilégios.  Assim, através do sistema de educação, da produção política e  cultural transferem com sutileza  a todos os habitantes, mesmos os  europeus que imigraram para cá a partir do século XX,  os erros cometidos por eles desde o inicio da colonização, em 1500. Um exemplo do escamoteamento de responsabilidades se dá na  generalização da responsabilidade pela escravidão africana da qual o Brasil foi o último país a se desfazer. Os livros e as retóricas político partidárias  atribuem as responsabilidade aos brancos e não aos brancos portugueses e aos brancos da Igreja Católica Apostólica  Romana.   
             Ainda que, de uma maneira geral,  o passado seja estigmatizado como uma coisa triste, feia e dolorida, o exercício de rebuscá-lo é imprescindível, pois o passado norteiapropicia consciência e consistência cultural milenar. Ao se libertar da retórica dominante tradicional colonizadora luso-católica do novo continente  e, no Brasil, de seu controle federativo, redescobre-se o verdadeiro percurso histórico e a identidade milenar. Quando isso ocorre o  passado, o presente e o futuro transformam-se em uma coisa só.
                A discriminação intencional e controladora que se estabeleceu em relação aos paulistas (também por Santa Catarina, Paraná, Espirito Santo entre outros) foi alimentada pelo conjunto de valores intelectuais e políticos tradicionais dos pioneiros transladados e adaptados na América do Sul desde o inicio no século XVI. A discriminação se estabeleceu como instrumento de proteção  dos pioneiros por ocasião da invasão de Holandeses e Franceses e prosseguiu como instrumento de afirmação cultural até muito tempo depois, por ocasião da  imigração italiana e de outros povos da Europa que não portugueses. Portanto, a discriminação foi se solidificando e se aperfeiçoando como instrumento de controle  ao longo da história, sendo utilizada  no inicio do Modernismo por Getúlio Vargas que  representou um grupo de militares e civis e se estabeleceu pelas armas no comando  do poder Central, em 1930. 
             A discriminação em relação aos italianos se consolidou de vez como instrumento institucional  a partir de 1932 quando os paulistas perderam a Guerra Democrática que, a bem da verdade,  não se tratava de questão local já que envolvera grupos de todos os outros Estados da Federação. Esse instrumento político de discriminar nacionalidades foi utilizado por Getúlio Vargas também em relação a alemães, italianos e japoneses por ocasião da Segunda Grande Guerra. 
         Os paulistas perderam a Guerra e se renderam a política ideológica, intelectual e econômica comandada pela junção de oligarquias tradicionais de outros estados da federação representadas em Getúlio Vargas. Essas oligarquias obtiveram, naquele evento militar, o apoio estratégico de grupos  internacionais de origem marxista e de suas organizações políticas partidárias que já estavam solidificadas no Brasil. É fato histórico que a influência marxista  no Brasil se consolida  a partir de 1922 com a fundação do Partido Comunista Brasileiro e com o movimento intelectual, artístico e político dos Modernistas marcado pela Semana de Arte Moderna que ocorreu naquele mesmo ano, 1922. 
                 Durante os anos que se seguiram após a derrota dos Paulistas no evento bélico de 1932, o casamento entre os vitoriosos das oligarquias tradicionais e dos partidos de origem marxista passou a ser marcado por brigas e reconciliações. Assim se deu a separação de corpos entre Getúlio Vargas  e os aficionados  pela Revolução Russa de 1917 que estiveram juntos no Golpe Militar de 1930 que impediu que Julio Prestes assumisse o cargo de Presidente da Republica para o qual fora eleito pelo voto popular. Os marxistas apoiaram e se serviram estrategicamente do ditador Getúlio Vargas enquanto ele esteve no governo Central e, depois de sua morte, enquanto continuou politicamente vivo. influenciando os partidos de origem trabalhistas.
                      Anos depois, já no inicio da década de oitenta,  Guarnieri, membro do Partido Comunista Brasileiro e seguidor do Movimento Modernista, estava acomodado neste casamento entre os tradicionais e os marxistas. Desde a fundação do Partido Comunista Brasileiro e a Semana de Arte Moderna de 1922 é que os marxistas tentam se instalar no poder Central do Brasil. Inicialmente sob a inspiração da Revolução Russa de 1917 e, no decorrer da história, sob o financiamento político e econômico da União Soviética.  
                   Guarniere, como tantos outros de seu tempo, tinha influência de personagens como Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, assim como também lhe servia de inspiração os lideres das organizações operárias, camponesas e estudantis das décadas de sessenta e setenta do século XX. Guarniere comungava com os intelectuais brasileiros ligados Internacional Socialista, o que, de uma maneira geral, foram os responsáveis pela formação política que deu perfil  à sua geração. A atuação  artística e intelectual de Gianfrancesco Guarnieri  deixaram sua marca na história cultural e política do eixo São Paulo - Rio de Janeiro.
                Não é com relação a elas, a essas marcas teatrais de Guarniere que está o foco deste ensaio. O  interesse deste texto está voltado  para o contexto indelével a que me presenciei,  me vi inserido, a que me vi submetido quando da atuação desse secretário municipal da cultura e teatrólogo italiano. Logo no inicio a inauguração de sua gestão como Secretário Municipal de Cultura da Prefeitura do Município de São Paulo foi marcada pela distribuição de cargos entre os membros do Partido Comunista Brasileiro e, consequentemente, pela dispensa de funcionários que já estavam atuantes na Secretaria de Cultura do Município. Entre os que foram substituídos por membros do Partido Comunista Brasileiro,  estavam os funcionários da área de restauração do patrimônio histórico, lotados no restauro da Casa da Marquesa no Pátio do Colégio, marco da Fundação de São Paulo de Piratininga. 
            Entre os dispensados estava Nelson Rodrigues Mouriz, artista plástico e restaurador.  Independentemente da origem política e da procedência do indivíduo que passou a ocupar o cargo, certamente o critério usado por Guarniere não foi técnico, científico ou profissional.  Certamente a troca de servidor público  não se pautou na necessidade de  recuperar e cuidar do  patrimônio cultural e urbanístico do Município de São Paulo. Também não se pode julgar ou condenar isoladamente  a atitude desse que se tornou secretário da cultura porque parece que desprezar a cultura da cidade de São paulo passou a ser costume político brasileiro a partir de 1932. Por outro lado  não se reconhecia como ainda não se reconhece a existência desse tipo de nepotismo tão comum e usual que se desenvolveu no Brasil desde o tempo da colonização luso/católica e que  classifico como "nepotismo político partidário".
                     Nelson Mouriz, por sinal, participara comigo, no final da década de setenta e inicio da década de oitenta, dos movimentos de recuperação da autoestima dos cidadãos que residiam e trabalhavam no município de São Paulo. Incluíam-se entre estes os que nasceram aqui e que eram filhos de representantes de povos originários de todos os cantos da Europa, de todos os cantos da África, enfim de todos os cantos do mundo, de todos os cantos do Brasil. Incluíamos também os índios nas discussões de recuperação da autoestima, porque esses foram massacrados. Os índios, que não foram reconhecidos pelos construtores da nacionalidade,  são, de fato, os únicos naturais deste continente. 
                 Ainda com Nelson Mouriz ocupando o cargo de restaurador, a Secretaria de Cultura sob a direção de Guarniere, havia dependurado em 1984, na Casa da Marquesa, no Pátio do Colégio, uma faixa oficial com letreiro piscante em que se lia ” Diretas Já”.  No entanto sabíamos do acordo político do movimento pelas Eleições Diretas para presidente da república. O acordo político entre os marxistas era de manter  o que já estava sem que houvessem mudanças significativas no contexto das representações parlamentares, já que muitos deles haviam sido eleitos pelo MDB. Os que estavam envolvidos no acordo das Diretas Já que culminou com   a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney, em 1984, são os mesmos que estão no poder ou disputam por ele ainda agora em 2016.  Ocorre que percebemos com antecipação de quase 20 anos os interesses tradicionais que vinham desde de 1922 e que se movimentavam em 1984 com a nova possibilidade de alcançarem o poder Central. Em virtude dessa análise resolvemos intervir dentro da nossa miudez numérica e com o pouco que tínhamos à mão.                          
Nelson Mouriz e Valionel(Léo Tomaz)
na janela da Casa da Marquesa, em 1984
              Juntamo-nos em cinco, três rapazes e duas moças, subimos no segundo andar da Casa da Marquesa e acrescentamos um “Z” no Já do Diretas Já  e afixamos o desenho de uma cruz branca na faixa piscante de fundo negro. Então fizemos uma performance como se estivéssemos ao lado de um caixão funerário. Onde estava escrito Diretas Já passou a ler-se “DIRETAS JAZ”. Fotografamos e depois seguimos em direção à a Praça da Sé onde encontramos com outros amigos e em pleno comício pelas Diretas Já, debaixo de chuva torrencial, abrimos enorme faixa  de oito metros de comprimento por dois metros de largura onde se lia; “Pela Descentralização Política, Econômica e Cultural”. Fomos ignorados.
              Nossas discussões não interessava a ninguém, até mesmo porque o Muro de Berlim ainda nem havia caído. Nesse período, as estratégias eleitorais dos movimentos políticos, sob a influencia dos elementos da Igreja Católica , da esquerda bolchevique  e da herança da ditadura do Getúlio Vargas, consideravam os imigrantes brancos de origem ocidental, (como são os  italianos), inimigos do "povo", da revolução e da identidade brasileira.  Um exemplo da influencia desse tempo está na atitude do atual presidente da república, Luis Inácio, o qual, tão sintomaticamente, se referiu aos brancos de olhos azuis como os responsáveis pela crise econômica mundial que ocorreu  em 2009.
                  O segundo momento em que notei a discriminação em relação ao paulista ou, pelo menos, aos paulistanos com as minhas características biológicas e culturais foi lá na década de oitenta quando a Secretaria Municipal de Cultura estava sob a batuta do marxista italiano Guarniere. Naquela época recebi um covite oficial para participar do Fórum sobre Cultura que ocorreu no Centro Cultural São Paulo, complexo de salas e plenários situado próximo a Estação Vergueiro do Metrô. O referido Fórum  iniciou  seus trabalhos com a apresentação de protocolo de intenções por um professor da USP - Universidade de São Paulo. Esse mesmo professor presidia o encontro que tinha na mesa a presença de outros profissionais detentores de títulos acadêmicos e honorários. O tal fórum contava ainda com a plateia de atores culturais  sem os quais não haveria como dar veracidade ao evento. A platéia  formada por atores dos diversos movimentos culturais ignorados da cidade de São Paulo  se postava diante  de um palco italiano onde vários representantes acadêmicos estavam sentados e  ancoravam os cotovelos sobre uma longa mesa. Todos sentados, debruçados,  com caneta e papel nas mãos. 
             O docente, professor de História da Universidade de São paulo -USP-,  que estava no comando, em sua apresentação,  afirmou, entre outras coisas,  que: “A cidade de São Paulo é formada por pessoas oriundas do norte, do nordeste, de outros estados do Brasil e mesmo do interior do estado de São Paulo”. Depois da fala do representante oficial da Secretaria de Cultura do Município de São Paulo neste Fórum, se apresentaram outros convidados especiais destacados da plateia os quais se disseram representantes de movimentos culturais atuantes na cidade de São Paulo. 
                   A primeira a falar foi uma moça afrodescendente que se apresentou como representante de uma organização cultural do bairro de Ermelino Matarazzo ou Itaim, ambos da populosa região Leste da idade de São Paulo. A jovem afrodescendente era parte da Comunidade de Base da Igreja Católica Apostólica Romana em um dos bairros supracitados. . Em sua fala e com um texto escrito que segurava com uma das mãos ela afirmava que: “o Brasil é formado pela mistura de portugueses, negros e índios”.  Com base nesse conceito,jovem seguia propondo atividades a Secretaria de Cultura.  Com uma postura de quem estava segura de si, como se nada do que estava propondo fosse pré elaborado pela própria Secretaria Municipal de Cultura, ela apresentou algumas formas de organização de forum para a participação popular na administração cultural da cidade. Não havia dúvida que ali naquele encontro oficial patrocinado pelo italiano comunista Guarniere, dava-se continuidade, agora com o viés marxista, ao conceito cultural dos colonizadores pioneiros portugueses , dos católicos apostólicos romanos e dos marxistas que se dizem no direito de proprietários da identidade nacional brasileira.
              Após as falas desses dois representantes  foi aberta à participação da plateia, momento em que me inscrevi para usar da palavra. Quando me deram o microfone questionei da seguinte forma: “ Sou um ativista cultural desta cidade e fui convidado formalmente a participar deste encontro. Agora estou com um problema existencial e gostaria que a mesa que preside este Fórum me desse ajudasse a resolvê-lo. Eu não sou português, não sou negro e nem sou índio. Também não vim do norte, do nordeste e nem de outro lugar qualquer porque nasci aqui na cidade de São Paulo. Diante disso e do que foi apresentado aqui na abertura dos trabalhos pelo professor da USP,  presidente deste Fórum, e também pela moça que se disse participante de movimento cultural e da Igreja Católica Apostólica Romana de Ermelino Matarazzo, um bairro dormitório da Zona Leste da cidade de São paulo, passei a ficar com um  problema que julgo ser muito sério. Diante do exposto pelos responsáveis por esse encontro  solicito que os membros da mesa tomem uma decisão: Não fui identificado nem na fala do professor e nem da moça e portanto peço que a mesa declare ou que eu não existo ou que este forum não existe. Gostaria que os responsáveis por este evento decidissem sobre isto agora e depois então me retiro”.
                 Algo muito importante ocorreu naquele momento e não foi nenhuma decisão que tenha vindo daquela mesa. Passei a receber apoio de boa parte da plateia dos quais alguns eram afrodescendentes, outros eram nordestinos e entre esses, recebi a solidariedade de Severino do Ramo, um poeta  de origem indígena que participava dos movimentos culturais da cidade de São Paulo.  Logo que a plateia começou a se manifestar ao meu favor, percebi que os microfones e os gravadores  do Fórum começaram a ser desligados.  Numa segunda fala, inquiri também sobre a necessidade de se confirmar a existência dos participantes da mesa diretora já que todos que se agrupavam em volta dela  eram brancos e alguns de sobrenome de origem italiana.  Aquele encontro, bem como o tal forum, sob o ponto de vista da platéia,  acabou naquele mesmo instante!
                       Enfim, passado tantos anos, ainda hoje noto uma grande dificuldade para apresentar as coisas de São Paulo e das pessoas com as minhas características genética e culturais. Também devo reconhecer que  atualmente já posso me identificar  como paulista de origem europeia sem tanto constrangimento, sem despertar rumores de separatismos e outras baboseiras políticas coercitivas. Mas a administração das coisas públicas de São Paulo, a produção intelectual da área da educação, as representações políticas parlamentares do estado e dos municípios, os eventos e datas especificas da História deste Estado Federado ainda são desenhadas de acordo com as falas dos representantes oficiais  daquele Fórum de 1984. Quando trato da Guerra dos Paulistas de 1932, dos Índios desta cidade e do Rio Tietê ( alguns dos pilares  em que se  sustenta a identidade dos paulistanos), sinto que não desperta interesse, mas medo, insegurança e desprezo. Percebe-se, no entanto, que estas reações são frutos da política oficial imposta a São Paulo, cujo território ainda está sob o estigma da ocupação que vem desde de o golpe de Getúlio Vargas em 1930
             A constatação dessa realidade política, administrativa e cultural não pode ser confundida com postura sediciosa. Ao contrário, diante da globalização e de seus instrumentos de comunicação trata-se da necessidade que habitantes de toda e qualquer origem, de todo e qualquer lugar,  a exemplo dos  que habitam este território secular denominado São Paulo, de coabitar com as outras realidades em um mesmo estado nacional. Tanto faz se essas realidades  são as da federação brasileira ou de  tantas outras  realidades internacionais. O que não se deve é abdicar de  características regionais, culturais e históricas para atender a este ou aquele desejo ideológico, político e econômico. A constatação da realidade histórica e  atual no campo da  política administrativa aponta que o Governo Central está longe de ser democrático e federativo. O governo central é a extensão do império e os eleitos são imperadores por quatro ou cinco anos com direito a reeleição por mais um período. 
                 Os três poderes dão sustentação a esse regime monárquico tupiniquim, bananeira,  que desde Deodoro da Fonseca se faz confundir com república. Independentemente de guarnieres e de todos esses acontecimentos, sinto que não tarda e libertos seremos também. Até porque a liberdade nunca dependeu de governos brasileiros. A liberdade sob o ponto de vista pragmático, vem de fora para dentro, não depende de oligarquias nacionais dos países subdesenvolvidos e está vinculada à globalização da informação e ao desenvolvimento da comunicação digital. A liberdade de expressão é um fluxo histórico que vem de fora para dentro. (PIGATTI, V, T., 2009)

Valionel Tomaz Pigatti(Léo Tomaz)(PIGATTI, V, T.)

Currículo Lattes:   http://lattes.cnpq.br/0781027245850748

Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri nasceu em Milão, filho de músicos antifascistas que decidiram mudar-se para o Rio de Janeiro em 1936, quando ele tinha dois anos.
Em 1955, Guarnieri fixou-se em São Paulo e, com Oduvaldo Viana Filho, fundou o Teatro Paulista do Estudante, que depois se uniu ao Teatro de Arena, que seria um dos centros de resistência cultural e de conscientização popular no início do regime militar implantado em 1964.
Guarnieri escreveu em 1956 sua primeira peça, "Eles Não Usam Black-tie". Montada em 1958, pelo Teatro de Arena, a peça transformou-se num marco da dramaturgia brasileira, ao retratar a luta operária, a divisão de classes e os conflitos sociais referentes ao proletariado. Seguiram-se as peças "Gimba" (1959), "A semente" (1961) e "O Filho do Cão" (1964).