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quarta-feira, 27 de abril de 2011

GARIBALDI, CONFESSIONÁRIOS E O PARAÍSO DOS OLHOS AZUIS.

                                                                                             (PIGATTI, V, T., 2011)
Hoje, já sendo homem maduro e no inicio da terceira idade, lhe são muito vagas as lembranças do momento que passou a perceber que existia outra realidade do lado de fora da casa de seus pais,  ali, depois do portão, já na calçada, entre o muro que dividia o quintal e a rua. Não conseguia lembrar com clareza do período da vida  em que começou a pensar sobre o que conseguia ver quando, do portão, olhava para os lados que lhe davam a extensão da rua. Não lembrava do que envolvia sua vida naquele pequeno espaço físico e de tempo, nem na importância ou valor das coisas que cercavam sua existência. Guardava na memória apenas algumas referências, algumas sensações ao buscar lembranças daquela rua. No entanto, quando era ainda criança já conseguia perceber pessoas diferentes das de sua família e isso agora lhe vinha à mente. Mas, naquela época,  não tinha adquirido ainda a capacidade de entendê-las como pessoas brancas, pardas, morenas, germânicas, negras. O fato é que, mesmo não entendendo, em algum momento começou a ter sensação de estranhamento diante dessa variedade de semblantes e cores e também que estava sendo estranhado por elas. Essa seria a realidade  em que se via inserido pelo restante de sua vida.  
              Já na adolescência passara a ter  indelével noção de que havia nascido em um lugar, dentro de um país,  que era dominado por outro lugar desse mesmo país. Dois países, matriz e colônia em um só, no mesmo território nacional.  Um deles, o dominante, abstrato, festivo, cultural convivendo de maneira harmônica, natural com os outros que eram dominados. Como adolescente não tinha das noção das causas, todavia percebia, com certo incômodo inexplicável, que havia uma língua que se falava na rua e que não era a mesma que lhe ensinavam na escola, havia a história da sua casa, da rua e a outra na escola.  Constatava com estranheza que o educador  da escola que frequentava passava caminhando pela mesma rua e habitava próximo de sua casa. Porém, o educador se fazia muito estranho ao ensinar as coisas do outro outro lugar do país que não era o lugar em que ele vivia. Tinha a sensação que o professor também o estranhava embora ambos tivessem a mesma tez e, provavelmente, a mesma origem européia. 
                 Na sua adolescência até que se interessou pelos ensinamentos daquele professor. No entanto, passando-se os anos, foi ficando cada vez mais confuso e desconfiado com as coisas estranhas que o professor lhe ensinara e que permanecera em sua lembrança.  Cada vez mais lhe consolidava um sentimento de que o professor era, na verdade,  homem aprisionado, sem referência, bastante frágil e triste.
           Mais tarde, aos 19 anos de idade,  depois de cumprir com o serviço militar obrigatório, agora já rapaz e pronto para procurar por uma moça para formar família, frequentando curso pré universitário, veio-lhe na lembrança aquele professor do ginásio. Preparando-se para o vestibular de um curso superior, em vias de optar por carreira profissional, percebeu que seguia pelo mesmo caminho daquele professor da adolescência que também fora educado em uma faculdade onde aprendera aquilo que lhe ensinara. Porém, ainda que o professor não se identificasse com o que aprendera, repassava aos meninos e meninas  o que lhe haviam ensinado. Certamente agia assim, sem nenhum questionamento. Vindo também de família pobre, o professor reproduzia o que lhe ensinaram apenas para sobreviver em paz, com o salário que lhe era pago como profissional educador. Por isso que contava histórias nas quais ele próprio não se via  e nelas não estavam presentes seus parentes, seus ancestrais. 
          Quando ainda era adolescente não possuía noção ou consciência desse conflito de identidade. Apenas não se sentia confortável com aquilo tudo como se alguma coisa molestasse a sua existência. Talvez nem mesmo o ensinador tivesse consciência, pois, caso contrário, não estaria ali prestando-se àquilo, mesmo que tivesse que abdicar do emprego e do salário. Moço ainda, de pouca formação e diante de tão poucas observações, no entanto uma questão, aparentemente tola, frequentava constantemente sua mente. A quem ele e o professor deveriam estranhar? Deveriam estranhar os seus país, seus avós, seus bisavós? Deveriam estranhar suas famílias que envolviam os irmãos e a parentela mais extensa a  que pertencia seus ancestrais? Embora inconscientemente, o certo é que  esse questionamento mostrava que ele já havia dado inicio à procura de si  mesmo e que haveria de encontrar rastros de sua identidade,  perseguindo-a por toda a sua vida. Por não ter se encontrado na história que lhe ensinavam na escola, vasculhava os próprios pensamentos e as lembranças  que pudessem responder  sobre ele mesmo. Começava a vasculhar em sua memória a história de sua própria vida, de seu significado,  do  significado de sua família e de seus ancestrais. 
          Nesse exercício de visitar o passado, encontrou em sua lembrança  resquícios das  noites escuras  dos anos de 1954. Época em que as ruas do bairro em que habitava ainda não possuíam  iluminação e boa parte da vizinhança eram chácaras habitadas pela fauna endêmica, cujos terrenos eram cortados por pequenos córregos alimentados por inúmeras nascentes. Ao anoitecer tudo era escuridão e silêncio do lado de fora da casa onde habitava com seus pais, irmãos e avós. 
             No abrigo interior da casa levantada por seu avô e seus tios em 1923, trinta e dois anos depois apenas uma lâmpada descia dependurada do teto da sala para iluminar a máquina de costura com a qual sua mãe costurava sutiãs. Ela buscava esse tipo de serviço de costura nos lojistas do bairro do  Brás para ajudar nas despesas da casa. Essas lembranças vinham prazerosamente  em seus pensamentos e de forma muito clara. Eram lembranças dos tempos da sua mais tenra idade. 
           Concentrando-se um pouco mais,  trazia do fundo da memória as lembranças dos momentos em que se ajeitava entre o encosto da cadeira e as costas de sua mãe. De olhos fechados podia ainda sentir  o vai e vem das ancas da mãe  que se movimentavam quando a perna direta impulsionava o pedal que fazia girar a engrenagem da máquina.  Agora podia comensurar a grandeza do amor e da preocupação de sua mãe. Provavelmente ela fazia contas de cabeça de quanto dinheiro iria receber a cada vez que completava circunferências juntando o tecido ao enchimento do bojo do sutiã. Provavelmente ela considerava o que poderia nos oferecer  a cada vez que a peça ficava pronta e era empilhada por cima da outra.
          Lembrava agora com sensação de aconchego e de proteção indescritíveis  de como era tão pequenino para caber por entre as costas da mãe e o encosto da cadeira. Lembrava-se e retomava as sensações de medo quando, das costas da mãe, lançava olhares de soslaio para os objetos da sala, para as janelas e portas que se abriam para a escuridão do lado de fora. Fitava as frestas do vitrô entreaberto ou  a maçaneta da porta, imaginava o que poderia estar acontecendo do outro lado, imaginava a existência de observador estranho a olha-lo pela fresta, a mão desconhecida de fantasmas da noite a girar a maçaneta. 
           Sua imaginação supunha o que poderia estar ocorrendo  do lado de fora da parede,  na noite da rua solitária, em meio a vegetação do fundo do quintal, dentro da mata nativa da chácara que ficava do outro lado da rua, bem de fronte sua casa. Imaginava homens estranhos, homens da terra, bichos perigosos, coisas desconhecidas agindo na camuflagem da escuridão, nos espaços acobertados pela vegetação.  Lembrava-se de  seu ínfimo universo embebido pelo medo do escuro, pelo desconhecido, pelos ruídos que a mente acrescentava à escuridão da noite. Somente agora, como  homem maduro, conseguia pensar e se importar  com tantas outras mães, com tantas outras crianças que haviam sentido aquilo antes dele por tantas outras gerações. Esses pensamentos lhe acompanhavam já há muito anos.   
Quando frequentava o curso universitário, lhe fora oferecido muitos livros, mas, no entanto, em nenhum deles deparou-se consigo mesmo. Foi então que sentiu a necessidade de abrir a porta da identidade em sua mente. Podia caminhar com sua imaginação, podia vasculhar, procurar, perguntar, negar, se libertar. Podia dar inicio a viagem pelo tempo, atravessar oceanos e estar em Sartirana de Lomellina, em Rovigo, Pavia ou Colle Umberto. Podia estar na Saxônia, em Veneza ou no Sul da Áustria, podia estar em qualquer lugar do mediterrâneo ou no vale do Rio do Pó ou do Arno, na Padânia ou na aldeia aos pés dos Alpes. Podia ouvir o barulho do mar Adriático e imaginar suas águas à noite e todos os monstros que emergem dos medos atávicos ou dos deuses que flutuam sobre as ondas emprestando sua força aos homens cansados. Podia ser sua avó nas costas de sua bisavó quando ela nem imaginava onde haveria de estar tanto tempo depois. Ele era criança agora, sua mãe também criança, suas avós crianças, seus avôs crianças, seus bisavôs crianças e nenhum deles imaginaria em que lugar da Terra poderiam estar a não ser entre as costas da mãe e o encosto da cadeira durante centenas e centenas de anos. Entendeu que a sua mãe, que lhe guardara nas costas, um dia também esteve assim, aos três anos de idade, naquela mesma casa, naquela mesma sala, nas costas de sua avó. Ao perceber-se disso, entendeu que, como criança, estava em qualquer tempo, em qualquer lugar porque todas as crianças são iguais e são iguais todos os meninos e todas as meninas. 
           Certamente  quando ainda criança não conseguia entender o universo do lado de fora de sua casa onde habitava sua família. Assim, como qualquer outra criança, podia lembrar-se de sua casa que era seu pequeno território e do inesquecível rosto redondo de olhos rasgados de sua mãe lombarda. Podia lembrar-se da avó, como um vulto que havia passado por seus olhos quando criança. A velha e estrangeira avó que antes de ir de vez deixou-lhe a imagem de seu semblante suave, olhando-o com seu amor azul.  
    Quando já não cabia mais entre as costas da mãe e o encosto da cadeira,  empreendeu a sua primeira  incursão do portão de casa até a esquina mais próxima e depois, com o tempo, crescendo, foi mais além, foi empurrado a ir até a escola. E quem eram aquelas pessoas que na escola ensinavam e o obrigavam a decorar os nomes dos outros? Na época sabia apenas que seus avôs vieram de um lugar a que chamavam de norte da Itália e que fora, outrora, parte do Império Austro-húngaro. Somente dos seus avós ouvia sobre isso e apenas deles. Diziam ditados em frases que não estavam nos livros da escola, palavras que não aprendia na escola, maneira de falar que não estavam na alfabetização. Somente dos da sua casa ouvia isso. Sentia-se estranho diante dessas duas realidades e a escola também o estranhava e foi isso que quase o levou  a sentir os seus familiares estranhos também. 
        Depois que conseguira passar no vestibular, completado o curso universitário e se graduado, começou a entender por interesse próprio o que acontecera aos  antepassados que atravessaram o oceano, quando ainda  se encontravam no vigor da juventude,  entre os 16 e os 20 anos de idade,  no meio da vida. Embora não dissessem, embora aceitassem o destino em silêncio sem saber os verdadeiros motivos que os levaram a atravessar o oceano, agora na velhice, com netos já crescidos, por vezes notava-se seus olhares perdidos como se estivessem caminhando sem parar em uma floresta escura. 
           No íntimo da solidão necessária que alcançavam quando saiam sozinhos para apanhar lenha na mata distante ou quando cuidavam da horta no fundo do quintal, tinham a premonição que haviam sidos levados a um erro de convencimento e deixado de seguir pelo caminho certo tomando um rumo sem volta. Eles se arrependeram de algum pecado cometido na decisão, mas sentiam que era tarde demais para corrigir o destino que lhes pareciam como algo inexorável. Assim deixaram a si próprios e legaram  a sua prole a condução de suas vidas por este  destino, esperando que ele  lhes propiciassem, a qualquer momento, a oportunidade de saírem do purgatório. No fundo da alma havia a esperança de que algo inesperado os pusessem às portas do paraíso. 
             Como em uma história ancestral,  acalmavam-se ao imaginarem-se  como barqueiros  que nascem em uma margem de um rio e passam a vida com o propósito de levar os filhos até a outra margem.  Remam calados pela vida, sem  dar explicações  aos herdeiros, sem contar-lhes nada sobre seus equívocos, seus pecados. Os pais remadores imaginam que irão desembarcam os filhos em outro lugar e que,  sem saltar da barca,  salvam os filhos em terra firme e retornam para o rio deixando-se levar pela correnteza até se perderem por entre a neblina densa que separa a vida da morte.
        Lembra-se por um momento de quando se tornou profissional graduado e desejou se  transformar em gaibéu universal. Com o título de bacharel na mão  imaginava transitar de continente a continente como se fosse de  fazenda em fazenda agrícola. Poderia se sentir perdido como sua mãe, já idosa, também se sentira quando seu pai se foi de vez. Eles tinham a mesma referência, quase que a mesma história, quase que a mesma genética, quase que do mesmo lugar, mas os seus filhos não mais assim. 
                Sabendo disso,  tinha, agora, consciência de que teria que cultivar o pouco do que sobrou dos seus antepassados em suas lembranças. Teria que guardar desesperadamente os velhos documentos familiares, resistir ao esquecimento, interpretar o que seus antepassados disseram em silêncio. Andar por eles, fazer o caminho inverso da barca e alcançar a margem do rio de onde eles partiram naquele dia fatídico. Teria que caminhar em direção aos outros rios e atravessa-los com os outros barqueiros mais antigos. Que direção se deve tomar quando se quer caminhar e seguir adiante? O que é caminhar adiante? Seguir adiante é, por acaso,  seguir em direção ao  futuro ou ao passado? O que não é passado e futuro?
                     Ainda protegido do frio e do medo pelo cobertor, devidamente acomodado entre as costas da sua mãe e o encosto da cadeira, lembra-se agora  com doçura do som do instrumento do qual seu pai fazia soar notas musicais de um hino de louvor a Deus. Ao lembrar o som do instrumento tinha a sensação de que o paraíso lhe parecia estar bem ali na frente de seus olhos, Era ali a outra margem do rio onde seus avôs que vieram do norte da  Itália  haviam deixado os seus desesperos e desconsolos, as suas pobrezas e desesperanças. Os seus parentes, suas casas, a sua língua e dialeto, a natureza, o sol e o frio, a história em estavam inseridos,  tudo, tudo  que tinham havia ficado lá nas terras do outro lado do oceano. Ao se contar sobre essa travessia seu avô se referia a um grande rio.  Dizia ter vindo de um lugar onde o bisão é castanho, onde o mar quebra com calma na praia, onde o sol brilha sem afetar os que possuem a pele e os olhos claros.                                          
                            Eles deixaram o lugar quando ainda eram jovens e caminharam até aqui, na direção de um paraíso que lhes convenceram estar mais à frente, como se na Terra não existisse outro lugar assim. Seu pai, o filho mais velho de seus avós,  nascido já do lado de cá, também haveria de continuar a incansável procura que havia herdado do silêncio de seus progenitores. A música era uma entre tantas outras formas de estabelecer contato com o paraíso ou, pelo menos, de ser aproximar, acatar e agradar Aquele que escolhia os convidados e guardava o grande portão  da entrada. E hoje, mais do que em outro momento, parecia-lhe que o pai havia encontrado o caminho e ao mesmo tempo dado a resposta histórica aos que iludiram e enxotaram os seus antepassados do lado de lá e os fizeram sair e atravessarem o grande rio para o lado de cá.
Faltou-lhe pouco para tomar a decisão de continuar com essa saga de não parar,  de seguir e seguir. Faltou-lhe pouco para acompanhar os que decidiram continuar caminhando, agora em direção ao norte do hemisfério, ao norte da América. Pregava-se aos quatro cantos que era para lá que deveriam ter desembarcado seus antepassados, que lá é que se confirmara a existência do paraíso. Custou-lhe  desconfiar que também no norte não havia o paraíso. Percebeu ao caminhar em direção ao passado que, mesmo sem nunca terem consciência do fato, foram seus antepassados mais longínquos quem estiveram no paraíso. Mas eles já não estavam aqui e não havia como contar aos outros que o paraíso poderia ter ficado lá atrás, de onde vieram, de onde viveram os primeiros dos seus, onde os primeiros dos nossos foram enterrados. Não poderia dizer porque ninguém diz a quem já se foi, pois somente os que estão e os virão é que poderão nos ouvir. A quem dizer agora que o paraíso vem antes, o paraíso está lá para trás, um pouco antes de Eva dar a maçã a Adão?
O certo é que ainda que não pudesse chegar lá, ao menos poderia chegar mais perto, estar mais próximo Dele e de si mesmo. Agora que está entrando na terceira idade, vai percebendo essas coisas naturalmente. Tudo vai se tornando mais claro na medida em que se compreende a própria história. O Paraíso, o Éden não haveria de estar no futuro, mas sim no início, como o silêncio de cada barqueiro revelou a cada um de nós e que certamente diremos da mesma forma aos nosso filhos. Ele disse em silêncio que era no passado que deveríamos insistir e por onde deveríamos viajar. O acúmulo de conhecimento e experiência que a maturidade lhe proporcionou naturalmente o fez sentir que já estava pronto para iniciar a sua própria viagem.
       O mapa estava gravado na lembrança que tinha dos pequenos detalhes que os mais velhos haviam lhe comentado, do que sua mãe contara, do que seu irmão mais velho ouvira de sua avó. Lembrou-se então de que lhe haviam falado de sua avó na neve, no frio, muito frio. Não demorou a reconstituir a conversa de sua mãe dizendo que sua avó, quando menina, sentava-se na calçada da rua da cidade de Pavia, no norte da Itália, de onde via uma igreja cujo campanário estava separado da nave central. Ficava sentada ali esperando por seus pais que retornavam do trabalho. Passava horas sentada sozinha com o frio da neve na pele e o frio da solidão social na alma. O dia em que se levantou da calçada daquela rua foi para embarcar no navio e ir-se para nunca mais voltar. O campanário da igreja separado da nave central ainda hoje deve estar esperando pelos olhos azuis de sua avó ou pelos herdeiros que ficaram com o tom castanho de seu avô no olhar.                  
          Ao partir de lá, sua avó deixaria de ir ao confessionário para informar a igreja o que acontecia na vila. Não iria mais ao confessionário da igreja  de onde fora expulsa aos dez anos por repetir inocentemente o Padre Nosso que aprendera com os filhos dos anarquistas. Não iria mais ao confessionário contar ao padre o que os familiares falavam entre si sobre a guerra fratricida,  não cantaria mais aos ouvidos do padre a canção que a excomungou e que tinha os seguintes versos; Garibaldi è andato a messa in una salsiccia di cavallo. Il Cavallo scivolato e caduto a terra Garibaldi.  Alguns anos depois, aos 14 anos de idade, ela embarcaria com seus pais  em um navio que a depositaria para sempre do lado de cá do oceano. 
          Lembrara-se do frio da avó e comparava ao que via quando menino, pela manhã, da janela de madeira de seu quarto. No inverno a geada esparramava-se por sobre a grama no quintal da casa que seu avô havia levantado em 1923. Do lado de fora, pela manhã, logo cedo,  a fina camada de gelo solidificava o espelho da água da bacia que ficara ao relento e endurecia o lençol que passara a noite no quarador. Os flocos de neve dos quais sempre ouvira sua avó falar e que nunca vira por aqui, seguiam em sua imaginação de menino nas noites de inverno. De tanto ouvir e imaginar acabou por projetá-los nas flores dos espinheiros nativos que nasciam livremente pelos terrenos baldios próximos à casa. Pensava poeticamente, como criança, nas possibilidades dos flocos de neve terem o mesmo perfume das flores do espinheiro. Flores  de espinheiros que também  surgiam  no inverno e se os flocos de neves  fossem assim tão lindos como elas então o lugar de onde sua avó partira seria maravilhoso. Aquele lugar que sua avó contou a sua mãe e que essa lhe contara, certamente seria mágico e não via motivos para ela ter saído de lá. Quantos anos levaria para entender tal universo que seus antepassados em silêncio haviam depositado nele?
Ainda era criança pequena quando enxergou o mar pela primeira vez. Seus olhos não passavam do quebra ondas e suas descobertas estavam na praia, naquele pequeno espaço onde a onda finda e morre quase que imperceptivelmente. Ali onde a água que volta para o mar despede-se da sobra que deseja ficar na areia. Tantas cores dos cascalhos das ostras e outros crustáceos, tantos brilhos dos cristais de areia que refletem a luz do sol. Imenso esse universo que seus olhos rebuscavam naquele pequeno espaço da areia da praia quando nem três anos de vida tinha ainda. Nunca imaginara um mar que não fosse esse, calmo, tranquilo, de se ver o fundo, minúsculos peixinhos e a areia. Uma orla de pequenas praias, pequenos cais, onde as marolas tocavam nas pedras escuras chamando sua atenção, fazendo um som de maneira discreta. Rebuscava agora o que guardara em imagens sonoras nas lembranças de sua vida.
Ao retornar dos passeios ao mar em direção a casa de seus pais, ia tendo a sensação de que se distanciava de alguma coisa que o prendia. Ao mesmo tempo, ao chegar a casa, tinha a sensação de estar e, da mesma forma, de não estar em seu lugar. Havia algo inexplicável, uma sensação estrangeira. Poderia morar por cem anos naquela casa que ainda assim sentir-se-ia, como estrangeiro, peregrino. Também ao olhar o mar,  elevava o seu olhar para o horizonte, como possuído por espírito de eterno viajante. Por causa do mar, receava se aprofundar pelo interior do continente e se distanciar cada vez mais do oceano,  porque nele estava o caminho de volta dos seus, o seu caminho de fuga, a possibilidade de se resgatar.
Ainda menino de seis ou sete anos, nos primeiros meses de escola, os professores de história  lhe ensinaram sobre pessoas que eram as proprietárias desse lugar do lado de cá do oceano. Aquelas pessoas tinham seus sobrenomes nos livros da escola, nos cabeçalhos, nas historietas das cartilhas de alfabetização, nas autorias dos hinos incompreensíveis que os professores obrigavam-no a decorar e a cantar. Sua mente criança podia ser lavada e preenchida na escola com as histórias que queriam que ele decorasse, na identidade em que queriam que ele se transformasse. Mas por obra das conversas que sua avó e seu avô tiveram com sua mãe em noites de lampião e velas, ruas barrentas, trabalho exaustivo, cansaço milenar, eram as informações de seus antepassados que prosseguiam nele e que o libertavam. Eram as informações genéticas que o barqueiro havia descarregado em terra firme que resistiam.
                   Sua mãe colocou-o em suas costas e enquanto cerzia  bojos de sutiãs, ia  contando-lhe tudo também. Nele haveria de estar para sempre, ainda que adormecido, algo que é transmitido ao outro no silêncio da existência,  pelo simples ato de fecundar. Talvez, por isso, muitos sofrem, carregando sem saber,  eterna insatisfação interior passando a vida a perseguir as terras prometidas. Se sua avó estivesse ainda sentada na calçada da rua olhando para a igreja com o campanário separado da nave, estaria plena em seu último suspiro, teria cumprido sua missão. Mas ao embarcar menina, guiada pelos pais, no porto de Triestre selou definitivamente sua intranquilidade e tornou-se eterna estrangeira. 
               Se tivesse emigrado para outras terras da Europa poderia se locomover e andar atravessando fronteiras terrestres, mas ao cruzar o Atlântico degredou-se inocentemente. Foi colocada do outro lado da barreira de água salgada, intransponível para os que vieram para a miséria econômica, intransponível para os que vieram continuar com as mentes lavadas por ordem dos confessionários, intransponível para os que vieram trocar mais uma vez de rei, para os que foram designados a caminhar para o limem da civilização ocidental, para a zona de misturação. 
                 Foi assim que a avó caminhou para longe de sua própria história, de seu próprio sobrenome. Para ser esquecida e esquecer dos seus. Talvez o muro de pedra do vizinho que ainda hoje se mantém em pé fosse uma resistência indelével. Talvez as ferramentas de carpintaria e alvenaria empilhadas no barracão fossem a esperança. Assim como o pé de louro, a romã, o figo e a uva no quintal de muro branco também fossem o mapa de onde fora enterrada a identidade. Tinha a sensação de que tudo isso que podia ver da janela de sua casa, fosse  o balão mágico que em uma dessas noites alçaria voo,  levando consigo a casa, o terreno e suas pessoas, colocando-os do outro lado do mar, exatamente no lugar que guardaram em suas lembranças, sem explicar nada, sem pedir nada, sem dever nada a ninguém, nem mesmo aos que ficaram por lá e que, por essa fatalidade, fizeram-se de guardiães para rechaçar todas as possibilidades de retorno daqueles que de lá tiveram que sair. Talvez fosse nesse balão que seus avós depositavam a  esperança de que algo inesperado os resgatariam e os  colocariam novamente às portas do paraíso. Talvez por isso, eles cuidavam tão bem da casa e de tudo o que havia em seu quintal, pequeno país do lado de cá do oceano.
A terra e o lugar caminham juntos com as pessoas, as cores do mato e das folhas, o céu, o cheiro da terra molhada pela chuva, o frio, a luz do sol, as marolas que batem nas pequenas enseadas, o rio silencioso ou a corredeira que se faz de esposa alegre do silêncio da noite; tudo isso junto são  o lugar. Os olhos e a tez, o nariz, a cor e a espessura dos cabelos, os cantos, as modinhas e as histórias que marcam a vida das pessoas são o lugar. As cores das roupas, o cheiro da comida, os relevos são o lugar. As frutas, as flores do campo, as histórias de batalhas, as pedras empilhadas secularmente, a marca na soleira do portal, os monumentos seculares, milenares, a rua calçada com pedras, as casas de madeira envelhecida, a borra do vinho são o lugar. O lugar que deu a cor e o cheiro ao barro do qual fomos feitos e moldaram nossos utensílios e as paredes de nossas casas. O lugar que permanece ainda dentro de nós e que transferimos naturalmente aos nossos descendentes.
                    O lugar também é a casa centenária passada a cada geração de descendente. Casa em cujo catre , durante séculos, vem guardando centenas de juras de amor de cada casal que a ocupa, vive, envelhece, vai e a deixa para a nova família de herdeiros. Quantos gemidos estão guardados lá, quantos desejos, quantos ais ecoaram de bocas bonitas por todos estes séculos. Na casa deste lado de cá onde sua mãe costurava à noite, a figueira não tinha história, a parreira também não tinha história, o pé de louro como as outras plantas não tinham mais de quarenta anos. O que poderia se ouvir do pé de louro? O que se poderia ter dele, quem fora coroado com suas ramas? Logo haveria de ser cortado e de resto mais nada haveria de estar sobre este solo. Viviam agora para construir novo paraíso que substituísse aquele que estava em suas lembranças e que lhes foram tiradas ao terem suas mentes lavadas nos bancos de escola.                                                                                                                                             Esse exercício de construir algo do nada não havia lá do outro lado do mar. Lá os seus antepassados haviam levantado a casa por centenas de anos de trabalho. O que veio depois ampliou os cômodos, o piso, o que veio depois melhorou o quintal, fez o pequeno pomar. Veio outro que o substituiu melhorou as paredes, deu cor a elas, pintou-as. Seu avô, antes de sair, ajudou a melhorar as portas, a reformar o telhado, a comprar outros móveis. O pai de seu avô havia trocado vidros translúcidos e lisos da janela que haviam trincado e pelos quais se admirava o pomar nos fundos do sitio. Repintou a barra de cor azul celeste deixando-a diluída com o fundo branco, transferindo para a parede a mesma sensação das nuvens que ficam entre nossos olhos e o azul infinito quando nos colocamos a admirar o céu. Foi ainda o avô de seu avô que recolocou ladrilhos de mármore de face marrom indo até o amarelo claro que dividia o azul da barra de baixo com a outra metade toda branca da parte de cima da parede. Em suas lembranças a parede lhe parecia imensa tendo mais de quatro metros de pé direito. O pai de seu avô começara a refazer a pia da cozinha e seu avô o viu terminando-a um pouco antes de embarcar no porto de Triestre.
Não se lembrava de ter ouvido falar de bem e de mal como se falava disso do lado de cá. Quando criança sua avó sentada na calçada de onde via a torre separada da nave da igreja ouvira falar de Dionísio e Apolo. Era a Dionísio que se referiam quando havia exagero em alguma coisa, quando havia alteração de comportamento. A tranquilidade e as coisas certas e bem feitas eram atribuídas ao espírito de Apolo.  Em sua casa, entre quadros de santos católicos romanos e deuses pagãos emoldurados com requinte pelas mãos dos artesãos que trabalhavam com o gesso, havia também um ou outro prato de louça enfeitando as paredes. Neles via-se cenas de Diana na floresta pintadas em azul celeste ou marrom claro. No outro cômodo, o quarto com espelhos emoldurados com gesso dava a impressão de ampliarem o ambiente. Uma ou outra janelinha redonda como escotilhas de embarcação trazia claridade ao ambiente. As paredes pintadas de verde marinho e marrom clarinho quase palha, combinavam com as lajotas do assoalho marcadas por motivos greco-romanos. Na camiseira uma pequena escultura de Diana e um busto de Apolo.  E o Adriático suave, empurrava com sua brisa a cortina branca e fazia parecer que o  quarto era uma embarcação à deriva na história greco-romana, à deriva no mar. O sabor do sal da água do mar vinha à língua enquanto se aspirava um ar com cheiro milenar, carregado da mistura de todas as construções, de todos os gostos, parecendo exalar até mesmo pensamentos.
A fome e o frio da vila do lado de cá empapando as ideias com um sentido de inexistência, de negação. Uma repetição constante de situações em que o dia a dia tornara-se extremamente desolador. Nem mesmo ao mar, que a todos os seus antepassados havia servido, se devotava sonhos de melhores dias, de mesa farta, de alegria, de poesia. Há vezes que na vida  é preciso mudar ainda que para nada. É preciso ter noção do que se deixou para trás e em que lugar ou situação se encontrava, no que se estava envolvido, em que posição se situava. É preciso querer o cheiro, a imagem, o azul, a brisa, a cor, o sol e o sal, a terra, as roupas e as velhas paredes. É preciso querer a própria imagem, a dos da mesma etnia, os olhos, a cara, o jeito, os costumes, as rezas, os quadros, as cantigas, os entendimentos sem palavras, os santos, os olhos, os pecados, os homens e as mulheres, as meninas e os meninos.
Era preciso querer ter filhos, deixá-los nascer e sentirem-se seguros de que todos pertencessem à mesma família. Mesmo que um tenha menos ou tenha mais que o outro,  ao final a confiança de que todos sobreviveriam, todos seriam filhos, ainda que lhes faltassem rimo, ainda que lhes faltassem pais. Então quem ou o quê haveria de lhes impingir tal desunião, tal insegurança, tal solidão, de maneiras que já não se sentiam parte de tudo aquilo que deixaram, que já não faziam mais parte daquela célula familiar assim que embarcaram e partiram? Ali a olhar o campanário separado do prédio da nave, sem saber de mais nada,  seguiria o destino dado aos  seus país e que eles haveriam de dar à sua vida e a de todos os outros de sua descendência.
Mas por quê? O que pensou naquele momento de decisão? O que os levou a embarcar? O que conversaram na noite à beira do fogão que fervia o último alimento e aquecia os quartos da casa? O que acordaram entre eles, o que reclamaram, o que sentiram de tão juntos para fazerem amor depois da decisão? Qual a maior frustração? O que lhes fizeram os outros, o governo, a polícia, os bem sucedidos, as juntas de governo, os jornais, os comunicados, o rei, os bons súditos, o padre e a Igreja? O que lhe fizeram? Qual a tristeza que invadiu a alma e calou suas vozes? Quem não lhes deu alento ou a outra opção?
Talvez dentre todas as demonstrações de incapacidade, de derrota e impossibilidade, talvez dentre todos os sentimentos de frustração, de desconsolo, de desunião, de desamor, de desprezo,  de miséria social, o ato de negar-se ao outro deixando-o e indo, de negar-se ao outro embarcando, tenha sido a forra, a cusparada, a revolta e o desprezo ao desprezo, desamor fingido ao desamor escancarado, o desdém fingido ao desdém planejado. Desdém que carregariam com eles e que sempre haveriam de manifestar a qualquer lugar ou pessoa que lhes  ignorasse a existência.
Todas as ideias, todas as conversas tornaram-se os argumentos para alimentar o desejo de partida. A pátria, o Estado, seus valores e ícones foram soterrados no porão da alma rasurada e gasta pelo abandono e por tanta traição. Até o sol que dava cor aos cabelos, que não enrugava a testa, que deixava a vida dourada fora derrotado pelo frio da falta de agasalhos, da falta de perpectiva para o amanhã,  da falta de trabalho remunerado e, consequentemente, da falta de alimentos para aquecer o estômago e a alma. Um sol maior estaria em outro porto. Um sol que dispensava agasalhos, que nunca mais os fariam sentir tanto frio.
Sentada ali, onde enxergava o campanário da igreja que não podia frequentar,  a menina apenas corria os olhos azuis  para todos os horizontes. Desviava os olhos dessa paisagem panorâmica apenas para observar um ou outro que passava pela rua. Notava nos esporádicos transeuntes o sintoma da introspecção, da solidão,  que, como seus pais, pareciam estar convencendo a própria alma a partir. 
         Naquelas noites frias ela ouvia seus pais resmungarem sobre a vida. Iam deixando ao destino a responsabilidade de apontar a porta do paraíso que os donos daquele lugar diziam não existir mais do lado de lá. Os olhos do pai, como devia ter ocorrido há milhares de anos atrás em uma caverna, agora também se perdiam na dança das chamas que consumiam os poucos gravetos do centenário fogão a lenha. Já do lado de cá do oceano, seu pai agora velho, das poucas coisas que disse, falou-lhe daquele momento de decisão e das pequenas labaredas  refletidas na menina de seus olhos azuis. Ela, no entanto, lembrava-se dos olhos esverdeados do pai e a frase em que ele misturava decisão e amargura e que lhe ficara na mente até o último suspiro, longe, muito longe do lado de lá; “dobbiamo lasciare questa terra”. No entanto, ela sentia que não fora para ir-se de seu lugar que viera ao mundo.  Lugar onde a luz da lua se enfiara por debaixo da sua pele, onde a cor do mar entrara na retina de seus olhos, onde o dourado da luz do sol se refletia em seus cabelos.
do lado de cá do oceano, os pensamentos de quem sai de seu lugar de origem não são mais verbalizados naturalmente. Ao contrário, são embotados, num ruminar de sensações abstratas que levam a mente a uma viagem solitária  de revisão constante do percurso da própria vida. No entanto, nunca mais se resmungou ou se falou sobre os equívocos, sobre a ingenuidade ou dos erros de convencimento que os levaram a partir. Nunca se emitiu nenhuma palavra sobre o fato de ter se deixado convencer pelos discursos oficiais, pela conversa do padre na missa. Nunca se comentou sobre a ingênua traição cometida pelas mulheres ao oferecerem informações sobre suas vidas e de seus maridos no confessionário da igreja. Nunca houve uma única manifestação verbal de arrependimento. Apenas os olhares, a profundeza dos olhares, o tempo dispensado a olhar as chamas que subiam da lenha do fogão, a se envolver com elas no mais profundo e atávico momento do homem e da mulher. Esse silêncio nesse cenário lhe ensinara a decifrar a linguagem ancestral dos sentimentos de seu pai e de sua mãe. 
É possível lembrar-se hoje de tudo que ocorrera no passado e compreender aquele homem e aquela mulher. É possível sentir tudo isso ao buscar na memória tantos momentos mágicos em que todos estavam em silêncio, em volta à mesa grande da cozinha. É possível sentir ainda hoje a presença de um turíbulo ancestral invisível, que acompanha naturalmente as descendências. Turíbulo que tem força para ser alçado do lugar mais longínquo da Terra, que passa por cima do oceano e chega do lado de cá e volta para o lado de lá lançando o perfume  do incenso da memória. É nesse momento que  a névoa da fumaça do incenso se faz presente nos quatro cantos daquela casa. O perfume do incenso reúne avós, pais e netos em uma mesma mesa, cada qual colado ao outro e todos a refletir o fogo em seus olhos, como se isso já houvesse acontecido tantas outras vezes e se repetisse desse mesmo jeito  há milhares de anos, em momentos imprevisíveis, em alguma caverna ou habitação  lá do agora inalcançável velho continente. 
                         Onde estaria agora o paraíso, a salvação? Que deus era esse que o havia criado e o levado a embarcar para esse outro lugar mencionado nas rezas, anunciado pela boca do padre, propagandeado nas igrejas? Quem dos seus familiares cometera tal pecado com essa igreja para justificar esse degredo e, se não bastasse,  ainda continuarem punidos por ela do lado de cá do oceano? Como castigo, sua família voltava agora ao limem, a fronteira entre a civilização e a barbárie da qual os do lado de lá haviam se distanciado há muito tempo, às custas de muitas guerras. Do lado de cá sentiam-se como  se estivessem se rebatizando, como se negassem  a ideia que haviam lhes passado de aprimoramento da matéria e da alma, de passado e futuro,  de pior e melhor. Agora a avó que já havia sido menina, que olhara a igreja do campanário separado da nave central, voltava-se com seu olhar para filhos, netos e bisnetos. Cumprimentava seus estranhos vizinhos que  vindos de todos os lugares da Terra, da  Europa,  da Ásia,  do Oriente, da África. E com eles passou a dividir  o olhar,  a sujeição e o silêncio.
A cada geração que surge do lado de cá torna-se maior a distância entre lembranças e sensações e do que conseguem transmitir e compreender. É como se a cada geração os indivíduos se embrenhassem cada vez mais para o interior do continenteQuanto mais dão as costas para o mar,  mais se tornam incapazes de desvendarem os seus próprios segredos, mais se tornam insensíveis aos mistérios dos olhares que vagueiam pelos horizontes. Quantos dos seus haveriam de se perder para sempre? Quantos dos seus já haviam sido levados água abaixo, sedimentados em alguma foz, misturados a tantos outros que, embora vindos dos lugares mais distantes, mais estranhos da Terra, eram misturados agora na mesma história, na mesma sorte, no mesmo destino.
Quando os pais da menina,  em desespero e desesperança, aceitaram embarcar no navio, deixaram suas vidas nas mãos do acaso. Talvez por não entenderem muito bem o significado da partida que lhes estava sendo plantada, cultivada e incutida dia a dia nas propagandas oficiais. No entanto eles atenderam a um chamamento inexplicável, incompreensível para o qual  todos trabalharam e para que tal destino se cumprisse,  pois que era assim que Ele,  Dono de todos os destinos,  queria e era assim que seria, assim que deveria ser, assim que será. 
          Hoje, o menino que de tão pequeno cabia por entre as costas da mãe e o encosto da cadeira, é um senhor já na terceira idade, aposentado, boa situação financeira. Com tempo à sua disposição e diante de tanta tecnologia digital vasculha, mais profundamente,  a sua própria história. O oceano já não lhe é mais  barreira intransponível, nem a falta de recursos financeiros que tanto assolou seus antepassados lhe dificulta coisa alguma. Nada mais impede sua viagem em direção ao passado onde poderá se encontrar com todos os seus. Usando o computador e a internet pesquisa por  imagens indo atrás dos lugares de onde vieram os olhos azuis de sua avó. 
            Desde a sua infância até alcançar a vida reprodutiva e de formar a própria família, viveu como se estivesse em uma planície rica de novidades naturais sem atentar para as coisas do outro lado do mar que haviam ficado no olhar de sua avó.  Agora, já velho e tão distante do ponto inicial de sua existência, chegando ao fim de sua jornada em vida,  sente  necessidade de passar  ao restante da família o que os  antepassados lhe contaram . Enquanto os descendentes caminham pela vida que se apresenta em abundância e diversidade no vale, ele começa a se sentir único e indivisível. Tem a sensação de que está em uma pequena nave na qual estão suas experiências e descobertas e o seu próprio tempo. Sente-se em  um barco que se desprende do cais, que navega solitariamente levado calmamente pela correnteza  de um longo e largo rio distante do mar.  O que viu,  conseguiu saber, o que conseguiu descortinar, entender, os conhecimentos que lhes despertaram interesse estão todos dentro do barco. Ele e o barco são agora uma coisa só .         
             Deixa-se conduzir agora pela correnteza do tempo que lhe resta de vida,  calmamente, pleno,  levando como carga o que  deveria, mas não conseguiu deixar com os que estão espalhados pelo vale,  não conseguiu deixar registrado de alguma forma na planície onde vivem  seus descendentes e familiares que agora, como ele,  diluídos e misturados do lado de cá. Da proa de seu barco, observa  no horizonte a parede de neblina que marca a passagem do rio para o oceano onde tudo desemboca.  Ao final, ele, os diluídos e os misturados  seguirão em direção ao mar onde estão todos os que já se foram. Ele, em seu barco solitário, continuará descendo pelo rio até  o dia em que deverá sumir por entre a parede de neblina que  divide a vida da morte.  no território exclusivo da morte, onde tudo se vê com nitidez e  no momento em que a alma se desfizer do corpo inutilizado pelo tempo, seguirá o caminho em direção ao passado. Voltando pelo tempo poderá atravessar todos os mares e se reencontrar com cada um de seus antepassados, cada qual no respectivo tempo e lugar em que viveu.  Conhecerá até mesmo os antecessores que não foram alcançados em suas lembranças e pensamentos, pois cada qual o levará e o apresentará ao outro mais antigo. Seguirá por esse caminho do passado até ser recebido pelo último ou o primeiro que certamente o estará esperando na porta do paraíso.(PIGATTI, V, T., 2011)


                                                                                                             Valionel Tomaz Pigatti (Léo Tomaz). 
                                        
                                                                                                                   Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/0781027245850748