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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

GEMIDOS DO IMAGINÁRIO

(PIGATTI, V, T., 2010)
A casa foi erguida em 1928 em bairro afastado do centro da cidade de São Paulo. Uma casa de tijolos queimados nas olarias de Itaquera, assentados em paredes levantadas com com liga de barro amassada com os pés. Construção situada a três quarteirões da estação do trem do subúrbio em parte do bairro onde haviam poucas casas espalhadas entre muitas campinas e serrados cobertos de sapé
                        Arquitetura simples com telhado de duas águas cobrindo  três cômodos divididos em  quarto, sala e cozinha. Havia ainda um banheiro pequeno com telhado de uma única água que ficava germinado à casa e tinha sua entrada pelo de fora sendo acessado pelo quintal. Era dessa forma que se erguia o banheiro, também chamado de privada, separado da casa para proteger o interior de cheiros desconfortáveis e guardar a discrição de quem fazia uso.  Um pouco mais ao fundo do quintal a fossa negra, sempre em terreno de declive abaixo do poço e muna distância que se pensava segura para não haver contaminação. Uma pequena varanda ou terraço na lateral da casa que protegia a porta da sala e oferecia para as visitas o tapete para limpar os ´[es e deixar os sapatos protegidos do tempo.  Para quem passava pela rua de terra batida ou acessava o portão de entrada da casa, se deparava com a data de 1928  gravada  no centro de um triângulo em alto relevo artesanal,  localizado  no alto da parede, entre o ponteiro do telhado e  a janela do quarto do casal  que ficava voltada para a rua. 
                        Terreno de dez de frente por cinquenta de fundo, adquirido  a preço de banana, como se dizia das coisas baratas naquela época.  A oferta de terrenos naquela região da cidade era  resultado de loteamentos de sítios e fazendas situadas nos arrabaldes, cujos proprietários lucravam mais oferecendo espaços para serem ocupados pelos imigrantes operários europeus do século XX.  A cozinha era cimentada com acabamento de nata de cimento misturada ao vermelhão. A sala com o forro de pinho e o assoalho com lambris de peroba da mesma forma também o quarto. O forro da cozinha era de treliça de ripas de peroba para fazer sair a fumaça das frituras, a mesma ripa que era utilizada para trançar os caibros e debruçar as telhas francesas. Uma pia, um fogão a querosene, uma espiriteira, anos depois substituídos pelo gás, uma mesa e quatro cadeiras. Uma prateleira e um guarda louça. Na sala uma mesa com acabamento melhor, de abrir ao meio, podendo aumentar de tamanho de acordo com o número de visitas, normalmente cunhados, que vinham aos domingos para a macarronada. 
            Ainda na sala havia janela lateral com formato igual a do quarto e sobre a cristaleira estava o ferro de passar colocado na vertical com a ponta empinada. As cadeiras na cor de madeira de canela, escura, como parte do conjunto formado ainda por cristaleira,  máquina de costura manual,  substituída anos depois depois máquina de pedal, quando também o rádio receptor apareceu por ali para ficar no alto da parede, protegido, perto do filtro de água feito de barro cozido. No quarto a cama do casal com colchão de molas preenchido com  crina de cavalo onde o casal aproveitava a privacidade para o prazer e amparava as cabeças em travesseiros de penas de ganso. O guarda roupa de quatro portas com espelho em uma delas, a  penteadeira pequena com gavetas para maquilagem e dois criados-mudos. No criado mudo ao lado do marido ficava o relógio despertador. Sobre o chão havia o tapete passadeira trançado com  tecido de juta e linho de variadas cores. No banheiro ao lado de fora da casa,  o espelho incrustado na pequena  prateleira  em formato de caixa de madeira  dependurada na parede onde repousavam o barbeador cotidiano, o pincel de barba, a saboneteira.  Ao lado da pequena pia que ficava debaixo da prateleira do barbeador, estava o porta toalha de rosto e na sequencia, ao lado da porta  de entrada estava  o vaso sanitário branco, o balde cheio de água para higiene. Ainda na parede, acima do vazo sanitário, ficava a bacia de zinco grande que era utilizada para os banhos, equipamento de higiene que foi utilizado até que chegasse a rede elétrica  e com ela a instalação do chuveiro elétrico. 
                   No banheiro havia ainda o pequeno vitrô que dava para os fundos  do quintal cujos perímetro era demarcado com cerca de arame farpado. Todo o terreno e mesmo os que se estendiam para além da casa  estavam cobertos com capim gordura, sapê e pequenos arbustos. Na lateral da casa, no espaço capinado onde  a família se reunia ao ar livre, havia o abacateiro,  a jabuticabeira e quatro pés  de banana nanica em toçeira. Mais próxima a casa,  e na direção da porta do banheiro estavam plantadas algumas verduras na pequena horta protegida das galinhas   por cercado de varas de tela.  Mais abaixo, já ao findo do lote, o galinheiro cercado por madeiras e telas onde as galinhas à noite dormiam em poleiros  protegidas na parte cercada de bambus e varas de marmelo. Um portão para a rua, ficava quase  que encostado ao mourão da cerca,  servia apenas como uma barreira virtual para as visitas ou para definir os limites entre a propriedade e o passeio público. O corredor cimentado que  ligava o portão ao pequeno terraço onde ficava a porta de entrada da sala, protegendo os moradores , as visitas e o interior dos cômodos  da casa do barro e da terra trazidas nos sapatos. 
A casa em levantada em 1928, abrigando um homem e uma mulher acasalados legalmente pelo matrimônio indissolúvel na igreja Católica Apostólica Romana e registrado  no Cartório Civil. Em 1928 foi adquirida a cal e o pó corante amarelo que cobriu a fachada de reboco das paredes externas, as janelas ganharam o tom verde-escuro da tinta a óleo que também cobriu os pontaletes do beiral. O trem apanhando o homem as cinco horas madrugada e entregando-o de volta  à vila as 19 horas, já ao anoitecer. A mulher costurando suas próprias roupas de vestir, remendando outra e confeccionando peças  de tecidos para serem usadas como fronhas e lençóis de  cama ou toalhas de mesa e panos de prato, cuidando da limpeza, varrendo o quintal de uso,  passando roupas  e pensando no silêncio natural dos primeiro ano de casada, enquanto não chegarao momento de dar a luz ao primeiro  filho já em gestação. 
                          Anos depois , já com cinco filhos, o dia a dia passou a ser preenchido pela sonoplastia da música da estação de rádio e pela voz de um locutor. Entre a locução e as canções, ela passava os dias preparando o jantar no começo da tarde para servir ao marido à noite e a  sua marmita do outro dia. Terminado o jantar, a mulher  recolhia os pratos e os limpava juntando o pouco que fora deixado com as outras as sobras que seriam lançadas para as galinhas  na manhã do dia seguinte. O que permanecia nas panelas e não fora tocado  que  servia-lhe  para o almoço do outro dia. O homem sentava-se em uma cadeira no pequeno terraço que protegia a entrada da porta da sala e ali pensava uma pouco na vida enquanto fumava dois ou três cigarros antes de se recolher para seu dormitório.  
            Durante o dia,  nos momentos de descanso, o tempo era preenchido com o olhar perdido lançado através  janela  do quarto. Ficava ali debruçada na janela e apoiada nos dois cotovelos  acompanhando  com o olhar um ou outro transeunte esporádico que passava pela rua, na ocupação de identificá-lo ou de procurar identificar os donos  de vozes distantes. Embora continuasse indo esporadicamente até a janela para observar a rua, boa parte de seu tempo  era dedicado agora  ao rádio receptor. Ao cair da tarde e começo da noite, a nostalgia na troca do sol pela lua, a tristeza meia rural e meia urbana dos arrabaldes, da suburbanidade ganhava a companhia do locutor e a sonoplastia das canções. A distância e a proximidade entre a nostalgia e o progresso, entre a lâmpada e o lampião, entre o querosene e o gás, entre a bacia e o chuveiro, entre as vozes distantes e o rádio, haveriam de acompanhar o casal por  toda a vida. 
                    O banho, a mesa do jantar, a cama e o sexo sem abajur, no escuro do instinto, consagrado pelo costume da igreja e do cartório. A menstruação que não vem e as tardes ocupadas em cerzir roupinhas de criança, rosas e azuis. primeiro filho  a ocupar o vazio do dia inteiro. O segundo filho  a ocupar o espaço do primeiro, a sequência lógica de um atrás do outro. 
                   A fábrica, o trem, a mulher, a rua, a casa e a calhação,  tudo ia assim sem ocorrer nenhuma mudança. Anos que se passam  e o rádio apresentando sempre um nome novo, mas são de pessoas dos mesmos lugares, com as mesmas ideias. Junto com o rádio  sempre  chega novo governo apontando a mesma e repetida nova esperança. Um atrás do outro os dias vão se seguindo e o universo do casal e seus filhos  não é maior que a distância entre a casa e a fábrica, entre a casa e o campo de futebol de várzea, entre a casa e o boteco, entre a casa e a casa da sogra, dos pais do pai, dos pais da mãe. O universo é do tamanho do percurso do trem que começa na estação do bairro e acaba dez quilometro depois,   na área fabril do bairro do do Brás. Vez ou outra se arriscam a seguir até  outra estação  mais distante ou até  outra cidade próxima. 
                    Agora é a sobra do almoço que se come na janta. Antes de chegar em casa, a visita ao balcão do bar  da avenida principal e o gole  da cachaça barata a que davam o nome de aperitivo, a fumaça cancerígena do cigarro que documento quem ainda é  homem e  de quem ainda é criança menino.   Quarenta anos depois as paredes da casa erguida em 1928 com tijolos de uma olaria próxima e ligados um ao outro pelo barro do quintal, ainda abrigava a mesma família. Passaram-se os anos e os filhos foram tomando seus próprios rumos. Cada qual buscando companhia de outra pessoa, formando família, repetindo a história, construindo suas casas em terrenos mais arrabaldes, ainda mais longe da cidade. Os que não puderam ir ficaram por ali mesmo, erguendo  cômodos independentes   nos fundos do terreno, ou agregando mais  cômodos a velha  casa.                  
                 A casa, a vila e mais gente. Cada filho com sua esposa, com seu casamento indissolúvel. Cada filho se ajeitando ali ou  indo embora. O tempo passando pela rua e pela janela, mas parado no rádio. O primeiro casal, o homem e a mulher que iniciaram esse ciclo, filhos de imigrantes,  se despedindo do mundo, indo para sempre,  vistos pela ultima vez  em velórios,  em caixões enfeitados de flores, cercados por filhos e netos. Quando os primeiros se foram definitivamente a casa foi-se  também. Os prazeres e as descobertas dos recém casados nas noites de 1928, os gemidos, a máquina de costura, a bacia do banheiro, as cristaleira, o desejo, as crianças, a cama, o cal, a fachada, tudo isso indo embora,  a história sumindo, dando lugar a outra  construção, uma loja ou  prédio. 
                     Outras histórias sendo acumuladas às primeiras e mais gente chegando, ocupando. A morte passou como a borracha que apaga e tirou dali toda aquela história, roubando todo  seu significado,  toda sua razão, como se 1928 nunca tivesse existido. Sumiu como o capim que crescia nos terrenos, como a enxurrada que descia pela rua, como o preá que era visto em meio ao sapé,  como o cachorro preso  ao arame que o guiava da casinha até o portão. Não há mais  portão, nem quintal, nem olhos e olhares, nada mais, nunca mais. Não há mais nada que possa lembrar ou dizer que tudo aquilo existiu, mesmo no menor tempo que se é possível registrar ou perceber alguma coisa. Apenas gemidos que se espalharam pelo universo  podem ser prazerosamente imaginados. (PIGATTI, V, T., 2010)


Valionel Tomaz Pigatti (Léo Tomaz) 1999 .

Currículo Lattes:   http://lattes.cnpq.br/0781027245850748