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segunda-feira, 10 de agosto de 2009

As pedras, os rios, os índios e nós dois.

(PIGATTI, V, T., 2009)
       O sujeito sem passado e sem futuro não tem compromisso com a preservação do meio em que habita ou da memória das coisas do lugar e de seus antepassados. A História que ensinam nas escolas públicas subdesenvolvidas  e  mesmo nas privadas também não lhes permite pensar nisto. O tempo das pessoas destes lugares é a sua vida temporal, de cada qual, inconscientemente finita,  o sujeito a desfruta como fim em si mesmo, reduzindo tudo a ele mesmo, em detrimento de todo o restante. Quando o sujeito morre o mundo também morre, pois carece de significado qualquer ideia de que há continuidade, mesmo para os que prosseguem vivos. Por isso, pelo antes e pelo depois, de memória e de compromisso, não estão vinculados a nada, pois que representam naturalmente a existência finita em si mesmos, como simplesmente começo e fim de tudo. Nem mesmo como os outros animais, os homens desses lugares se esforçam ou lutam para dar continuidade e preservar a própria espécie ou transferir qualquer herança ou qualquer lembrança.

Jardim de Colle Umberto - Treviso- Itália
Eu devo ter aprendido, suponho que desde a infância, nos meus 6 anos de idade, por algum motivo que não me recordo, que deveria enxergar as pedras. Colares e camafeus de minha mãe, Dona Rosa Tassi, filha de italianos do norte, entre vândalos e lombardos, com seu rosto arredondado e olhos rasgados, indicando que ela era resultado de uma mistura ancestral entre germânicos e membros da tribo invasora de Gengis Khan. Minha mãe tinha suas pedras que podiam ser falsas ou não, pouco importa, mas as tinha e ela as olhava com admiração diante espelho da penteadeira que refletia sua simplicidade e magnifica beleza.
Assim, ainda criança eu observava o brilho dos pedriscos da rua de fronte minha casa que refletiam os raios de sol. Depois, já no ginásio, aos 13 anos de idade, eu e meu amigo de nome Radamés, andávamos pelos campos próximos à vila procurando por pequenas pedras. Um dia desci sozinho até o córrego raso que corria pela chácara  que ficava próxima a minha casa e ali passei a peneira na areia debruçada em seu fundo  de leito e então encontrei uma minúscula vídia amarela. Talvez, por tudo isso, pelas pedras, eu tenha tentado Geologia na Universidade do Estado de São Paulo em seu campus da cidade de Rio Claro, no ano de 1975, com opção para Ecologia. Não passei no vestibular  e um ano depois entrei para o curso de Comunicação Social na Universidade de Mogi das Cruzes e me graduei.
           "Os melhores caminhos são os mais longos". Einstein escreveu que dois corpos quando se buscam livremente no universo procuram o caminho mais longo para se encontrarem. Disse ainda que nem sempre a linha reta é a menor distância entre dois pontos. Lembro-me de que entrei na Mata Atlântica lá para os lados da cidade de Mogi das Cruzes, sozinho, em 1968 , e, sem parar de caminhar, saí da floresta chegando a  praia do litoral de Bertioga, 14 horas depois. Diria que andei muito, ziguezagueei nas encostas da Serra do Mar. Por que haveria de andar em linha reta pela mata e perder a possibilidade de enxergar todas as manifestações da natureza e as suas formas? Se eu fosse turista não gostaria de caminhar em linha reta pela mata ainda que fosse a menor, mesmo que fosse  dessas de praças públicas tradicionais arborizadas  que resistiram a ideologia estética  dos síndicos modernistas.
          Na mata,  para conhecê-la, quanto mais voltas melhor, quanto mais desvios melhor. Então penso que para o ecoturismo o melhor caminho entre dois pontos é o mais longo. Penso que assim deve ser também o percurso entre o nascimento e a morte.
       A noite sempre cai primeiro e mais cedo para os que estão andando no meio da mata. As copas das árvores controlam a entrada da luz solar e, sendo ainda dia para os que estão a céu aberto, na mata as sombras chegam primeiro e põe todos seus habitantes para dormir mais cedo. Eu andando e o Rio Itapanhaú correndo e cantando ao meu lado. Receoso de não sair a tempo de dentro da mata e ter que dormir ali, buscava com os olhos e sem parar de andar, por uma pedra, uma grande pedra no meio rio enquanto avaliava a força de sua correnteza que teria de enfrentar. Uma pedra onde eu pudesse pernoitar com  mais de segurança, caso não achasse a saída da mata antes que se fizesse noite.
Pensei estar perdido e que nunca mais encontraria meus três amigos que haviam se embrenhado no dia anterior para alcançar o mesmo objetivo. Alcir galego, Sadao  mestiço nipo brasileiro e Simonal afrodescendente, era assim que se chamavam. Mas eis que bem à tardinha, quando o dia ia se cobrindo com a roupa da noite, encontrei o local onde havia sinais de acampamento na noite anterior. Notei de pronto que haviam pernoitado e acendido  fogueira. Ali encontrei quatro pedras circundando os restos da fogueira e nelas o nome de cada qual escrito à carvão. Eles sabiam que eu iria porque havia organizado e mapeado a expedição, mas jamais imaginariam que eu me embrenharia na mata e fizesse o percurso sozinho.
Aquela marca nas pedras que acusavam a presença de meus amigos em meio aquela mata deu-me forças e segui adiante. Quando o sol estava borrifando os últimos raios sobre a natureza, o caminho findou na margem do rio. Observei a profundidade do rio Itapanhaú naquele local para ver se dava pé. Vi seu leito coberto de cascalhos multicoloridos que ainda refletiam os últimos raios de sol poente. Então  tirei toda a minha roupa, fiz uma trouxa, coloquei na cabeça e atravessei nu o rio Itapanhaú. Já do outro lado, com o corpo relaxado pela água fria que descia da montanha, vesti-me e segui noite adentro em direção ao leste, apenas enxergando o caminho de terra clara e batida.  Já sob a luz do luar  fui seguindo pela estradinha de terra batida procurando sempre transitar pelo meio dela para não ser surpreendido por algum animal silvestre que estivesse de tocaia em suas margens.  Sem parar de andar e iluminado pela luz da lua segui pela estradinha até que comecei a ouvir o ruído do mar. E foi assim que andei por aquele caminho, à noite, sem enxergar o que havia mais à frente até dar com o mar e cair de joelhos na areia da praia. Fiquei ali por algum momento, de joelhos, observando as ondas quebrando na praia, tudo iluminado somente   pela luz das estrelas e da lua quarto minguante que me olhava lá de cima da linha do horizonte do mar. Então beijei a areia e o mundo, beijei o mar, as estrelas e beijei você. E beijei meus amigos, meus familiares, meus antepassados, meus amores, beijei a vida, a recompensa pela minha ousadia de ir, de cumprir com o compromisso.
Os indivíduos preenchidos pelos valores da educação tradicional de países do terceiro mundo como o Brasil, e que vivem nas grandes cidades, desprezam, de maneira geral, as pedras, os índios e os rios que cruzam as urbes. Não possuem interesse para as expressões que invocam a manifestação da natureza. A pedra lhe é apresentada como obstáculo para o trânsito, o rio que corta a urbes é visto como obstáculo, serve de grande esgoto poluído, o índio como ser humano primitivo e desprezível, um obstáculo ao desenvolvimento que nos apresentam, algo do qual  devemos nos  distanciar e que ainda oferece perigo por não ter sido de todo eliminado. 
Há incompatibilidade entre a pedra que salta do chão e a estrada por onde desliza as rodas dos automóveis. Há incompatibilidade entre o desejo primitivo de estar olhar o rio, banhar-se em suas águas e a imagem das águas poluídas que nos criam essa impossibilidade. Sentimento reforçado pela sensação de culpa por causar essa situação em que o rio  se encontra, mas que acaba por  dissimular-se no dia a dia de cada qual. Há incompatibilidade entre a pobreza e a insegurança de superá-la por outro caminho que não seja através do desenvolvimento tecnológico. Há incompatibilidade sobre a qualidade de vida proporcionada por essa condição do desenvolvimento tecnológico quando  comparada  às condição em que vivem os primitivos originais da América. Junta-se a tudo  isso o medo guardado na memória da possibilidade de, a qualquer momento, perder o que conseguimos acumular. Medo embotado de  voltarmos  ao passado onde a falta de recursos materiais e a pobreza marcaram a vida de nossas famílias para as quais, até mesmos as coisas mais simples da vida, somente era alcançada com muito esforço e abnegação 
É preciso se desincompatibilizar com essa educação e seus valores dominantes que já  nos acompanham como se fossem tradição.  Precisamos  nos  livrar da responsabilidade sobre algumas tragédias que essa educação e essa história oficial nos inculpa. Tragédias sociais como a escravidão africana, como o genocídio indígena, pelas quais não temos nenhuma responsabilidade na medida em que somos cidadãos comuns vindos de todas as partes do mundo. No entanto a História nos aponta como cúmplices para, com isso, esconderem e diluírem em meio da multidão os que são verdadeiros responsáveis. Pluralizam responsabilidades  para que possam se proteger no anonimato. Recuperar as pedras, o rio, o índio, nós dois e as coisas locais é encontrar-se com o mar, com nossa verdadeira identidade, com nosso verdadeiro amor.
         Ainda sobre as pedras, é necessário trata-las como elementos naturais, estéticos e paisagistas, como  representação cultural das mais completas e complexas para o Homem. Elemento de arrimo em terrenos preparados para o plantio, em terreno acidentado e íngreme. Sustentação de encosta e correção de voçoroca. Objeto para a incisão de escrita, registro de pinturas rupestres, esculpidas para a representação religiosa entre outras. Construção de abrigo, moradias, monumentos que resistem ao tempo. Pedras, até mesmo as que se manifestam em brilhos, adorno do corpo dependuradas em pescoços, orelhas e dedos. O quê pensar das pedras quando nos deparamos com o circulo de monolitos erguidos pelos nossos ancestrais no Reino Unido ou a grande pedra da Austrália ou as figuras da Ilha da Páscoa, ou dos seixos que, quando criança, eu tirava do riozinho que corria no mato de fronte a minha casa? Como esquecer a minúscula vídia amarela que recolhi da peneira.
Foi na cidade de Guapiara, sudeste pobre do Estado de São Paulo, que me deparei com o desprezo às pedras. Próximo dali, no município de Buri, onde havia  terminal ferroviário abandonado há dezenas de anos, como  estão todas as ferrovias paulistas, havia um monolito de dezenas de toneladas jogado no terreno. Cortado da pedra bruta  aquele bloco estava ali, abandonado, com  a seguinte  inscrição - Japan- em tinta vermelha. Era para ser  levado para o porto de Santos, como vinha acontecendo há muito tempo com a exploração dos minérios na região. Não sei porque aquele granito não seguiu e permaneceu joga no terreiro naquela estação de trem desativada!
          Andei pelo sertão daquela região de terreno empobrecido pelo constante uso de veneno nas plantações de tomate e pela poluição devastadora do ambiente natural promovida por empresários nacionais que se enriqueceram na queima das pedras para a fabricação de cal.  Andei com meu automóvel pelas estradinhas de terra batida a visitar vilas isoladas cuja população permanecia ainda no século XIX. Moradores que não tinha qualquer resquício de memória de quanto tempo estavam por ali.  Vila perdida na mata Atlântica,  com sua gente-bicho e toda sorte de deficientes  nascidos de casamentos consanguíneos. 
Implantei emissoras de rádios clandestinas pelos municípios daquela região e nas vilas isoladas onde a informação demorava dias e meses  para chegar, passou-se a levar comunicados e orientações  de toda ordem em segundos.  Os moradores mais isolados passaram a tomar contato pelo rádio com as  manifestações culturais surgidas entre os habitantes  região.  
 Depois de observar o território municipal e ver tanta pedra espalhada pelos campos, procurei pelo padre prefeito daquele município Sugeri que poderia se utilizar das pedras para calçar os terrenos íngremes onde as casas corriam perigo de soterramento em tempo de chuvas. Podia-se tratar toda a cidade com as pedras que se espalhavam pela paisagem dos campos do território municipal. Podia investir para desenvolver habilidades entre os cidadãos para que se aprimorassem artesanalmente no  manuseio das pedras. Não o convenci. 
De nada adiantou  constatar a existência de tantas pedras e de pessoas abrigadas em barracas de plástico preto. De certo havia algo que era comum  a todos eles que os faziam ignorar as pedras.  Eles eram “os Homens que não podem ficar", por isso construíam taperas de mato e barro batido ou viviam sob lona de plástico preto. Desprezavam as pedras para nunca construírem algo sólido em suas vidas, algo que pudessem acrescentar para a existência de seus descendentes. Estavam, mas não queriam ficar por isso não utilizavam nada além de barro e plástico preto. Agiam assim  para que nunca pudessem reclamar posse como ocorreria se  construissem ou levantassem algo em pedra, algo que varasse o tempo, algo que se transformaria em marco. Como me fora importante ter lido Os Gaibéus, de Alves do Redol, antes de ter ido nesta aventura para o Alto Vale do Ribeira!
            Ainda que a pedra seja tropeço para a ideia moderna de transporte e, consequentemente, da roda, pois ela é obstáculo ao se estender o asfalto, é incomoda no caminho do que anda, como bem se refere a ela o poeta urbano Carlos Drummond de Andrade. Porém a pedra pode estar por debaixo, sustentando a capa lisa, uniforme e retilínea do asfalto ou onde se assentam os trilhos do trem. Dentro das pedras estão druidas e duendes e a sensação do desconhecido, de algo que pode se abrir para outro lugar, da porta que pode se abrir para a riqueza. Dentro dela a escultura magnífica, o encaixe perfeito do aqueduto, o pé direito da casa milenar, a firmeza do terreno e a contenção da erosão.

" Tinha uma pedra no meio do caminho,
no meio do caminho tinha uma pedra "
Carlos Drummond de Andrade
             
As taperas de varas e barro batido dos " Homens que não podem ficar"  acobertam a educação precária que é culturalmente transmitida , acobertam  o analfabetismo, a falta de conhecimento tecnológico e artesanal, a falta de conhecimento de confecção de ferramentas ainda que das mais primitivas,  acobertam a disfunção e o desemprego. O "Homem que não pode ficar" é deseducado em relação aos conhecimentos na utilização de materiais duráveis e na confecção de sua habitação. A escola oficial tradicionalmente subdesenvolvida e dominante evita conversar sobre a realidade imediata desses homens e sobre a independência deles, sobre a vastidão das terras de ninguém onde não podem se estabelecer para que não hajam donos. Não lhes abastecem com o conhecimento que venha os orientar na utilização de materiais disponíveis na natureza com os quais podem confeccionar suas casas sobre a rocha e não na areia. Não lhes mostram como fazer ou adquirir ferramentas, como conter voçorocas, como demarcar o terreiro de serviço, na contenção de barrancos, na divisão de áreas de encostas para a agricultura, na construção de pontes, na condução e proteção da água. Porém até mesmo nos lugares mais ermos surgem pequenas fábricas de blocos, supostamente facilitando as construções, transferindo para o rural a necessidade de rapidez e tempo útil, valores de quem especificamente trabalha e vive nas urbes. Pode-se dizer, no entanto, que os blocos agilizam a construção, porém o que significa agilizar para os que estão inseridos em outro tempo, para os que não podem ficar?

                   Há também o " Homem que não quer ficar"  que antecede " Homem que não pode ficar" e que, diferentemente deste, despreza a herança e o que já foi construído por sua ancestralidade , abandonando ou  levado a abandonar a casa de pedra e a aldeia.   Ele se põe a caminho de  outro lugar, de outro universo, abdicando do anterior, rompendo a ligação entre ambos, para que seus descendentes não saibam disso jamais, para que não fiquem, para que busquem mais e mais.

Pedras que rolam
As pedras rolaram e eu era uma delas
As pedras que rolam juntam-se no vale
As pedras rolaram e eu sou uma delas
Nos juntaremos no vale
Não sabia dessa história
até o dia em que ela surgiu
Para chegar até ela
corri caminhos diferentes
Fiz-me chegar, dei notícias
não a deixei em paz
Éramos pedras rolantes
descíamos montanha abaixo
As pedras são todas iguais
mas entre elas existem as que se fazem rolar
Ousadia de pedra, coragem de pedra rolar.
Cada qual desceu por um dos lados, um caminho
Pedras que rolam em busca do rio
que nos fará rolar, que nos fará juntar
No rio que corta o vale
que nos fará caminhar, prosseguir
Vou parar perto de você !
No último movimento solitário.
Depois desceremos juntos, rio abaixo. 
(PIGATTI, V, T., 2009)
                                            Valionel Tomaz Pigatti (Léo Tomaz) 

                                                            Currículo Lattes:   http://lattes.cnpq.br/0781027245850748