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segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A geologia e o garrafão de vinho.

(PIGATTI, V, T., 2010)
                Fui subindo a ladeira da rua Hermilo Alves, que antes tinha outro nome, como acontece com tudo por aqui. Era terça feira de agosto do ano de 1976. Em meio aos que resolveram se exilar e os que preferiram ficar por aqui organizando as frentes de luta para forçar o fim da intervenção militar constitucional que tivera inicio em 1964 e resolvera estender-se no poder, estava eu a  decidir em qual curso de graduação deveria me inscrever para me submeter novamente ao vestibular já que fora reprovado no primeiro que fiz.

Até então, nestes poucos anos de juventude, havia reunido algumas experiências de vida as quais pouco ou quase nada me influenciavam na decisão profissional. Talvez, dentre elas, a mais significante tenha sido a minha curiosidade pelos brilhos das pedras, pelas diferenças entre os diversos tipos de minerais. Desde criança eu me interessava pela presença delas nas areias dos pequenos riachos que cortavam alegremente os terrenos ao redor da velha casa de meus avós. Chegando ao Brasil em 1889 e depois de percorrerem  por diversas fazendas do interior do Estado de São Paulo atrás de trabalho, meus avós resolveram residir definitivamente no bairro do subúrbio da capital paulista. Era por volta do ano 1923 quando meu avô se empregou como jardineiro em palacete situado no Largo da Concórdia, no Brás. Com o pouco que ganhava de salário comprou terreno em loteamento que passaria a se chamar Vila Ré e ali construiu sua casa. Pouco tempo depois deixou o serviço de lidar com jardins da casa do Largo da Concórdia e se empregou em fábrica de juta que produzia sacos de estopa e estava situada no bairro do Brás. Por esse motivo e pela boa herança material e moral que eles deixaram  é que ainda habito nesta Vila Ré que em italiano significa Vila Rei. 
                       Também naquele tempo de decisões profissionais me influenciava o fato de eu ter ido à pé e sozinho, em 1968, até Bertioga, litoral paulista, por dentro da mata atlântica da Serra do Mar. Isso me fazia gostar dessas aventuras de percorrer espaços territoriais e de ter relação mais íntima com a natureza.  Penso que a curiosidade era o que havia de mais forte em minha personalidade. Curiosidade que me levava a olhar com interesse pelas coisas pequenas ou grandes que se viam espalhadas na natureza. 
                                   Ocorre que  para me profissionalizar ou alcançar  formação de nível superior em universidade gratuita, do governo (?), eu deveria redobrar os esforços e assim me recuperar da falta de conteúdo que marcara minha juventude nos bancos das escolas públicas da periferia da cidade. Meu objetivo era entrar para a Faculdade de Geologia da Universidade do Estado de São Paulo situada no município de Rio Claro, interior do estado, cortada pela Estrada de Ferro Paulista. Entrar naquela faculdade e cursar geologia era a minha libertação em todos os sentidos, mas, principalmente de minha origem periférica, de meu passado cheio de dificuldades. Para alcançar esse objetivo matriculei-me por seis meses no curso preparatório por nome de Anglo Latino, no bairro da Liberdade. Com esse cursinho iria me capacitar com o que a escola pública não me capacitara e assim fazer o vestibular em condições de competir com os demais concorrentes.
Hoje fico pensando por que a escola pública não me qualificava na juventude e, ao mesmo tempo, por que a universidade pública exigia determinada qualificação para se alcançar suas vagas?  Escolas estaduais que formavam do primeiro ano até o colegial versus universidades públicas que graduavam os profissionais que ocupariam os melhores cargos, tanto no serviço público quanto na iniciativa privada. Mas esse é assunto velho, sem sentido, parece coisa de discurso do tempo em que havia conflito  de interesses entre comunistas e capitalistas. A verdade é que pode se formular varias respostas para essa questão e todas elas dependem do interesse ideológico de quem as responde. No entanto qualquer que seja a resposta, certamente não me incluirá e nem apontará solução para o que fora o meu problema e que agora  já não está me afetando mais.
                            Ginásio Estadual Professor Augusto Baillot versus Universidade de São Paulo. Grupo Escolar Galileu Menon versus Universidade do Estado de São Paulo. Colégio Estadual Paulo Egydio Martins versus Universidade de Campinas. Afinal, quais  escolas eram frequentadas por esses sujeitos que passavam nos vestibulares e conseguiam vagas nos melhores cursos dessas universidades públicas? É certo que havia exceções, pois que no decorrer de minha vida conheci alguns que superaram por conta própria esses obstáculos. Mas são poucos e dependeram muito mais de algo inato que já possuíam do que da capacitação oferecida pela escola pública.
Independentemente disso tudo, o que sei é que em 1976 eu havia gastado todos os meus trunfos. Havia investido nos seis meses de cursinho o pouco dinheiro que juntara. Tudo para me preparar para o vestibular. Então embarquei no ônibus da Viação Cidade Azul e ao chegar a cidade de Rio Claro me alojei por uma semana na residência de meu tio José Pigatti. Comprei o garrafão de vinho do vinhateiro local e passei as tardes revendo as matérias das provas que realizaria no outro dia pela manhã. O vinho eu tomava à noite já que, após as 20 horas, não havia vida noturna visível naquela cidade do interior paulista. As provas aconteciam no campus da UNESP e, para a área de geologia que eu havia escolhido, haviam trinta concorrentes para cada vaga.

                   Realizei todas as provas, esvaziei o garrafão de vinho, me despedi de meus tios e voltei para a cidade de São Paulo. No dia estipulado fui conferir o resultado do vestibular e dei-me conta de que não havia passado e nem me lembro mais da minha classificação. Hoje percebo que a ideia fatalista me acometera e fui para outra estrada da vida esquecendo definitivamente a carreira de geólogo. Não tinha recursos e aos meus 24 anos de idade sentia que algumas responsabilidades de homem cobravam-me decisões. O que fazer?
                     Impressionante como percebo hoje, avançando pela terceira idade, de como aquele vestibular de 1975 em Rio Claro jogou-me ao vento, como folha seca, como  pluma, como a pipa que se desprende da linha e da mão do menino que a controla.  (PIGATTI, V, T., 2010)


                            Valionel Tomaz Pigatti- (Léo Tomaz) 
                                        Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/0781027245850748